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A notável contemporaneidade de Guy Debord

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Autor francês viu na Sociedade do Espetáculo um mecanismo aperfeiçoado de reprodução da ordem do capital. Suas ideias ressoam com ainda mais força em nossa era hiper-conectada

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Conhecida principalmente por sua influência nas irrupções estudantis-populares dos anos 60, a obra de Guy Debord tem sido cada vez mais revisitada. O capitalismo de nosso tempo convida a essa reapropriação ao interiorizar o espetáculo como dinâmica central de sua reprodução. Assim, desviar-se rumo a Debord tem sido a trilha de muitos partidários da crítica implacável de tudo o que existe.

Guy Debord: antimanual de leitura, de Douglas Rodrigues Barros, é um recente e instigante esforço de ter suas ideias à mão para destrinchar nossa realidade. Seu autor é doutor em Filosofia pela Unifesp e já havia publicado anteriormente os livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Hegel e o sentido do político (LavraPalavra, 2021). Nossos amigos da sobinfluencia, selo paulistano, tomaram para si a responsabilidade de editar seu novo estudo.

A colaboração da sobinfluencia com Douglas em torno das ideias de Debord teve início ainda no ano passado. Em novembro último, a editora e o pesquisador construíram juntos o curso “Debord: o último marxista?”, cuja aula inaugural foi gravada e está disponível no YouTube. Esse percurso em comum deixa como principal legado o novo livro, que aprofunda algumas das questões abordadas no curso, como as observações do militante francês sobre o lugar cada vez mais proeminente do consumo cultural na contemporaneidade e os novos papéis sociais do proletariado.

A trajetória de Debord enquanto teórico e militante é intimamente conectada com seu papel de proa no situacionismo, um movimento de vanguarda nos campos da arte e da política baseado na França mas de alcance internacional. Seu pensamento costuma ser entendido como se posicionando “à esquerda da esquerda” – tendo aproximações, por exemplo, com o grupo Socialisme ou Barbarie de Cornelius Castoriadis e o Autonomismo italiano dos anos 70. São sujeitos políticos que concebiam de forma bastante crítica a atuação das esquerdas mais tradicionais, como a social-democracia e o leninismo, e investigavam outros caminhos para revolucionar o mundo e superar o capitalismo.

Sociedade do espetáculo apareceu por volta da metade dos anos 60 e imediatamente incidiu nos meios políticos, principalmente da esquerda radical europeia que encabeçou o Maio francês e movimentos análogos na Alemanha e na Itália. É, sem dúvida, a obra mais conhecida de Debord e a principal síntese de suas ideias. Em 2017, Iná Camargo Costa comentou seu brevemente seu impacto em artigo para Outras Palavras.

Reunida com o filme homônimo, de 1973, e o escrito de 1988 Comentários sobre a sociedade do espetáculo, ela compõe um ciclo de trabalhos que se debruçam sobre a forma preferencial da mercadoria nos últimos desdobramentos da sociedade do capital: o espetáculo. Muito longe de um mero artifício para ajudar nas vendas, o espetáculo se infiltrou em cada molécula da realidade nos últimos cem anos. Para Debord, diz Douglas, ele tornou-se o meio mais adequado para a manutenção da ordem capitalista nas condições de hoje.

Em seu livro, Douglas também dá especial atenção à inseparabilidade do pensamento debordiano com o de outros filósofos dialéticos. Primeiro, enfatiza sua ligação com Hegel, por via do jovem Lukács. Depois, sublinha o caráter marxista de sua obra, apontando a importância de conceitos como alienação e ideologia para sua interpretação do espetáculo na sociedade de massas.

Por esse caminho, chega-se à crescente relevância de Debord no século 21. Como aponta o livro de Douglas, vivemos em uma época em que visualizações dão dinheiro e as redes sociais são espaços privilegiados de acumulação de capital. A representação nos espaços digitais se tornou central para a vida – as fotos, os vídeos e os textos para as redes se multiplicam como forma de garantir, contraditoriamente, a presença das pessoas no próprio tecido do real. Debord foi quem apontou que essas questões desenvolveriam uma centralidade cada vez maior.

A filiação ao marxismo de Sociedade do espetáculo, por tudo isso, não se restringe ao campo dos conceitos: Debord não abre mão de suas intenções revolucionárias. Ao analisar a penetração absoluta do espetáculo na vida, a finalidade de sua crítica não é interpretar o mundo, mas mudá-lo.

Também por isso, suas ideias seguem indispensáveis, como relembra este livro, em um tempo de recuperação do horizonte de transformação radical das coisas.



Fonte: Outras Palavras