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A revolução do Emprego Digno Garantido

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Como superar a herança neoliberal, após derrotar o bolsonarismo? Em carta a Lula e em debate aberto por Lara Resende, economistas propõem que Estado assegure a todos um trabalho com salário digno e direitos. Por que a ideia é transformadora

Meu projeto 2


Às véspera de seu primeiro turno, as eleições mais importantes da história do Brasil parecem marcadas por dois afetos. O primeiro é uma alegria ansiosa, diante da expectativa de superar o pesadelo. O segundo é a incerteza sobre o que virá, após a possível vitória de Lula – neste domingo ou ou em 30 de outubro. Será possível sonhar com a reconstrução do país em novas bases — com um governo que, além de restaurar os chamados “programas sociais”, inicie as reformas estruturais necessárias para começar a vencer 500 anos de colonialismo? Ou este projeto permanecerá bloqueado pela gargalheira de ferro neoliberal, que estrangula o país há quatro décadas?

Ganhou impulso esta semana uma ideia que pode ser abre-alas de uma saída não-conformista. É o Programa de Garantia de Emprego (PGE). Na segunda-feira (26/9), foi o núcleo de uma carta aberta dirigida a Lula pelo IFFD1 — um think-tank que reúne jovens economistas e velhos mestres, como Luiz Gonzaga Belluzzo e Antonio Correia de Lacerda. O texto está publicado também por Outras Palavras. Um dia depois, o PGE foi o tema de uma palestra da economista norte-americana Pavlina Tcherneva (Bard College), introduzida por seu colega André Lara Resende e moderada pela professora Simone Deos, da Unicamp.

Embora de nome singelo, o Programa de Garantia de Emprego tem enorme potência antissistêmica. Como política social, ele é remédio para o drama de dezenas milhões de pessoas desempregadas e precarizadas. Como ferramenta política, pode anular, na prática, anos de desconstrução das leis trabalhistas (com a vantagem de socorrer, além dos CLTs, também os trabalhadores de plataforma). Como vislumbre pós-capitalista, assinala a possibilidade de desmercantilizar o trabalho, dissociando-o da submissão a um empregador e aproximando-o da realização de tarefas necessárias à comunidade. E além destes papeis múltiplos, o PGE tem uma vantagem adicional: ele apresenta-se não como uma proposta ideológica abstrata — mas como solução concreta e viável para problemas reais que afligem e sensibilizam as maiorias.

O Programa de Garantia de Emprego materializa-se num compromisso. Os governos que o adotam comprometem-se a oferecer ocupação a toda e qualquer pessoa que esteja disposta a trabalhar. Os salários são dignos. Os direitos (jornada máxima, descanso semanal, férias, 13º, aposentadoria, afastamento remunerado em caso de doença e acidente e todos os demais) estão assegurados. Pode haver benefícios adicionais: em especial, formação para recuperar déficit educacional (algo de enorme importância no Brasil).

O que parece fantasia, nas condições selvagens do neoliberalismo, já existiu no passado e existe no presente. Construído em teoria pelo economista Hyman Minsky, o PGE foi adotado de forma embrionária nos EUA, durante o New Deal proposto pelo presidente Franklin Roosevelt. Existe hoje na Índia, com enorme popularidade e eficácia. Por meio da Lei Mahatma Gandhi de Garantia Nacional do Emprego Rural (NREGA, em inglês), o Estado emprega e remunera, por 100 dias ao ano, centenas de milhões de agricultores, o que contribui de modo decisivo para a preservação da agricultura camponesa. Embora em escala menor, está presente na Argentina, por meio do plano Jefas y Jefes de Hogar.

Em que trabalharão estas pessoas – no caso brasileiro, milhões? Em sua palestra, Pavlina Tchernova referiu-se a um tema contemporâneo crucial: o desemprego tecnológico e como responder a ele. A automação e a robotização, lembrou ela, não precisam nem deveriam eliminar trabalho. Poderiam, ao contrário, liberar o esforço humano de tarefas insalubres ou exaustivas, e permitir direcioná-lo para atividades muito necessárias, ligadas ao cuidado e à coesão social. Na visão da economista, os afazeres abrangidos pelo PGE podem variar segundo a capacitação dos trabalhadores, indo dos mais simples (fazer manutenção de instalações públicas ou cuidar de jardins) aos mais complexos (organizar uma biblioteca).

Já na carta do IFFD a Lula, mencionam-se, entre muitos outras tarefas, distribuição de alimentos orgânicos, manutenção de bosques urbanos, cuidado de crianças e idosos, aulas de reforço escolar, atividades artísticas e lúdicas, pequenas obras como quadras de esporte, vigilância de espaços públicas, produção comunitária de comida. O sentido político da proposta é profundo: enquanto a automação comandada pelo capital desemprega (e com isso produz pobreza e desamparo), a opção política pelo PGE resulta em humanização. Imagine, por exemplo, um grupo de mulheres que se libera de parte das tarefas ligadas ao cuidado dos filhos, por terem alguém capacitado para fazê-lo por algumas horas por dia. Pense, também, no papel agregador que pode ter, para um grupo de adolescentes, um professor aposentado que se dedica a coordenar o mapeamento topográfico do lugar onde vivem.

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É fácil compreender o segundo papel do Programa de Garantia do Emprego – o de restaurar salários e direitos trabalhistas eliminados nas contrarreformas neoliberais. Se o Estado oferece ocupação digna e com liberdade sindical plena a todos os que desejam trabalhar, quem se submeterá a trabalhar por menos? A carta do IFFD a Lula argumenta: as condições oferecidas pelo PGE convertem-se, automaticamente, no piso de salários e direitos de que desfrutam todos os assalariados. Se os empregadores privados não igualarem estas condições, perderão sem demora sua força de trabalho. Como não podem dar-se ao luxo de fazê-lo, serão obrigados a se ajustar ao que o empregador público oferecer.

Isso desencadeará, é evidente, uma redistribuição da renda nacional em favor dos salários. Nada mais necessário, depois de muitos anos de mudança em sentido oposto. Corporações envolvidas na exploração por meio de plataformas serão as mais atingidas. E o Estado sempre terá meios de apoiar as pequenas e médias empresas eventualmente afetadas – por exemplo, pagando parte dos salários de quem elas contratam. Será mais um sinal do retorno da política, ou seja, da capacidade que a sociedade e seus governos precisam ter para fazer escolhas, ao invés de entregarem a gestão da vida à ordem insensível dos mercados.

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Mais sutis que as mudanças materiais, mas pelo menos tão impactantes quanto elas, serão as mudanças no imaginário social sobre o significado do trabalho humano. Ligam-se diretamente à ideia de desalienação. O trabalho reduziu-se, nas sociedades capitalistas, à luta pela própria sobrevivência. E os tempos neoliberais presenciaram a troca da ideia de solidariedade entre os trabalhadores, pela do “salve-se quem puder”, do individualismo extremo, do “empreendedorismo de si mesmo”.

O PGE instaura, ao contrário de tudo isso, a noção da relevância social de cada trabalho. Seu caráter desmercantilizador (e, portanto, pós-capitalista) emerge aí. Ninguém mais será obrigado a ganhar o prato de comida vendendo a força de trabalho a quem lhe forneça os meios de sobrevivência. Ninguém precisará, por exemplo, emprestar sua inteligência e seu suor a uma fábrica de armas, por exemplo. O Estado garantirá, a cada ser humano, as condições de sobrevivência.

Mas os afazeres a que estarão vinculados os que se beneficiarem do PGE não serão estabelecidos pela lógica do lucro capitalista, mas pela necessidade social. Segundo a proposta do IFFD, quem remunera os trabalhadores inscritos no programa é o Estado nacional. Mas quem determina o que deverão fazer são os municípios, a partir do que definirem suas populações e comunidades.

Como estabelecer esta autonomia comunitária? Será, certamente, o que na boa política se chama de um ótimo problema. A mera possibilidade de que um programa assim exista pode servir de estímulo ao ensaio de novas formas de democracia. Elas são o que mais precisamos, aliás, para conter o avanço do fascismo. Propor uma situação que bairro, ou cada território, é convidado a estabelecer quais são os trabalhos mais prementes para atender às necessidades coletivas será decerto um enorme passo para a reinvenção da política.

Em sua fala no debate proposto por André Lara Resende, Pavlina Tcherneva debateu dois aspectos importantes relacionados à proposta da PGE. Que tipos de jornada de trabalho ela geraria? E qual sua relação com a proposta de uma Renda Básica de Cidadania? A economista pensa que, em sintonia com a flexibilidade que marca as formas de socialização contemporâneas, deve haver múltiplos regimes de trabalho. Por que não permitir, além das jornadas tradicionais de 8 horas diárias, as de 6 ou de 4 – claro que com salários proporcionais?

Pavlina também vê enorme complementaridade entre o PGE e a Renda Básica. Ela julga que esta última possui características de universalidade incomparáveis. Permite, por exemplo, assegurar vida digna a quem não tem – por idade, ou descapacidades físicas ou psíquicas, permanentes ou temporárias — condições de trabalhar. Mas, excetuadas estas condições, o emprego digno garantido deve ser a escolha fundamental. Vivemos em sociedades em que não basta distribuir. Envolver os seres humanos no esforço de produzir as riquezas de que todos desfrutarão é igualmente decisivo.

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Neste ponto, surge a pergunta inevitável. De onde virá o dinheiro? Quem oferecerá o ingrediente mágico, sem o qual supostamente não é possível fazer com que a necessidade de ocupação remunerada, de alguns, se encontre com os serviços de que tantos outros necessitam?

Aqui, certamente convergem as respostas do IFFD, de Pavlina e do próprio André Lara Resende. O dinheiro virá de decisões políticas. Ponto! Todo o dinheiro contemporâneo é criado assim, ao contrário do que crê o senso comum. Entre 2008 e 2019, os Bancos Centrais dos EUA, União Europeia, Suíça, Japão e Inglaterra criaram, do nada, o equivalente a 15 trilhões de dólares para salvar os cassinos financeiros onde o 0,1% engorda sua riqueza já descomunal. No Brasil, embora os números absolutos sejam menores, a proporção da rapina é ainda maior. As taxas de juros são, há décadas, as maiores dos planetas De onde vem o dinheiro que mantém as roletas rolando?

Toda criação monetária redistribui a riqueza social. Mas então por que os Estados, que emitiram montanhas de dinheiro, a cada ano, para favorecer o baronato financeiro, não podem repetir o mesmo procedimento – agora em benefício dos 99,9%? Será a política uma roda que só gira em favor de alguns? Terá a luta de classes chegado ao fim? Quem responde não a estas perguntas terá de concordar que o dinheiro pode (e precisa!) ser emitido também em favor de ações como a PGE..

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Há uma possível lacuna na proposta do IFFD e de Pavlina, quando aplicadas à necessidade de reconstruir o Brasil em novas bases Num país em que há tanto a fazer, na garantia de serviços públicos de qualidade e na transformação da infraestrutura, por que não estender a PGE também a estas ações indispensáveis? Por que não direcionar a enorme riqueza da força de trabalho desaproveitada para ações de longo fôlego?

Po exemplo, a recuperação do SUS, com o preenchimento de seus grandes vazios assistenciais. A reconstrução do Ensino Público, com reinvenção dos métodos educacionais e dos currículos. A universalização do saneamento. A despoluição dos rios urbanos e das áreas costeiras. A revolução urbanística das periferias. A construção de redes de metrô nas regiões metropolitanas. A retomada da rede ferroviária. A transição energética, com construção de centrais fotovoltaicas e eólicas em sintonia com os direitos das populações e a proteção da natureza.

São debates a fazer. No momento, há algo certo. Ao relacionar um objetivo facilmente compreensível pela população com ações de claro caráter crítico e antissistêmico, a PGE pode ser a ponta de lança para quebrar o falso consenso em torno da disciplina fiscal imposta pelos mercados; para recuperar o encantamento da política e reabrir o debate sobre o futuro do país. Por isso, no momento em que surge mais forte como nunca a possibilidade de derrotar o fascismo e eleger Lula, poucas propostas são tão provocadoras e necessárias quanto esta.

1. Instituto de Financas Funcionais ao Desenvolvimento. Vale conhecer sua diretoria, os membros (brasileiros e internacionais) de seu Conselho Técnico-Científico e suas publicações.



Fonte: Outras Palavras