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E assim se passaram 100 anos!

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Por Kátia Maia

Texto originalmente publicado na Revista Mátria - publicação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação-CNTE na Edição 2017/Ano 15

 

 

 

revista matria 2017-48

Um século separa a Revolução Russa de 1917 e o ano de 2017. Cem anos de avanços e retrocessos nos direitos e conquistas alcançadas pelas mulheres. A revolução empreendida no início do século 20 foi um marco para o movimento feminista, mas nem tudo são flores...

 

O ano de 2017 começou sob o olhar atento de todo o mundo para as Marchas das Mulheres, que tomaram as ruas de cidades de vários países em repúdio ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Eleito e empossado, ele representa o retrocesso em direitos das mulheres e das minorias. O presidente norte-americano, durante a campanha, fez comentários vistos como misóginos e prometeu medidas como, por exemplo, contra o direito ao aborto. Segundo os organizadores da marcha, havia mais de 3 milhões de manifestantes nos Estados Unidos e em outros países.

Direto do túnel do tempo, cem anos atrás, o mundo assistia, na Rússia, o desenrolar de um roteiro que – contrariamente ao retrocesso deste século, personificado na figura de Trump – conquistava direitos para as mulheres jamais adquiridos em país algum. Antes mesmo da revolução sexual, encabeçada pelo movimento hippie nos Estados Unidos, a ideia de amor livre já rondava a sociedade russa. Em 1917, o conceito de uma sociedade mais igualitária ques - tionava a monogamia e preconizava a emancipação e direitos iguais às mulheres, que deixariam as tarefas domésticas para alcançar condições materiais seme - lhantes às dos homens.

A Revolução Russa, realizada em 1917, abalou profundamente uma região onde as mulheres ingressavam na força de trabalho, mas ainda eram responsáveis por criar os filhos, cozinhar e limpar a casa. As responsabilidades domésticas impediam-nas de fazer parte dos domínios públicos do trabalho, da política e de projetos criativos em pé de igualdade com os homens. A mulher russa conseguiu avançar em direção à sua emancipação total mais do que todas as mulheres juntas em mais de 200 anos de luta. O que se viu e viveu naquele ano representou um processo de avanço da agenda feminista para a época, talvez o mais importante da modernidade, dado o seu radicalismo e o seu alcance.

Wendy Goldman, em seu livro Mulher, Estado e Revolução (Boitempo/ Iskra, 2014), conta que, pouco tempo depois da Revolução, o código da família foi alterado. Envolvendo mudanças profundas na estrutura, nos valores e nos hábitos sociais. Com a Revolução Russa, as pautas feministas avançaram. A autora explica como a Revolução Russa e seus frutos modelaram os eventos do século XX de maneira tão profunda a ponto de ecoarem até os dias de hoje.

 

Contradições

Numa sociedade fortemente rural e patriarcal, foram aprovadas medidas como o direito das mulheres ao divórcio e ao trabalho; a legalização do aborto; a igualdade de salários de homens e mulheres; a licença-maternidade; a substituição do trabalho doméstico por lavanderias, creches e refeitórios públicos; dentre outros.

Em meio a todo o sentimento de mudança e avanços para as mulheres, estava claro que só o socialismo poderia resolver as contradições entre trabalho e família e a existência de múltiplas jornadas para mulheres.

 Entretanto, uma coisa é adotar mudanças, outra é mantê-las. “Os direitos adquiridos pelas mulheres na Revolução Russa não duraram muito. O ufanismo do início foi logo abandonado pela regressão de direitos, tais como aborto e divórcio, e a crescente propaganda em torno do heroísmo das mulheres com muitos filhos”, avalia a doutora pela Université Paris III, professora Tânia Navarro Swain.

De acordo com ela, na prática, a promulga- ção de leis não modificou de fato o status das mulheres, cuja representação social permanecia inferiorizada por séculos de dominação androcentrista, e, a partir de 1930, “a situação das mulheres se degradou na legislação, sem ao menos ter tido tempo de se enraizar na população”. O casamento livre, o divórcio e o aborto foram proibidos e as mulheres nunca tiveram relevância nas esferas mais altas da hierarquia governamental.

Goldman reforça, em seu livro, que os anos 1920 foram de intensa luta pela garantia das conquistas revolucionárias que haviam mudado concreta e profundamente a vida das classes trabalhadoras. Mas reitera o que diz a professora Swain quando pontua que os avanços perdem força e passam mesmo a regredir a partir dos anos 1930, com a ascensão da política estalinista, sendo que, em 1936, o aborto, que era legalizado desde 1920, passa a ser proibido.

 

Desafios

As leis reformistas, na avaliação da professora doutora, não tiveram tempo de ser realmente aplicadas, dada a sua revogação a partir dos anos 30. “Em dez anos não se modifica uma cultura patriarcal profundamente enraizada, o que só é possível com uma educação que transforme a igualdade entre os sexos em algo natural”, explica.

As mudanças viriam a se perder com o tempo, principalmente na década de 1930, após a ascensão de Stálin. Novos desafios se colocaram desde então, não apenas às mulheres, mas à própria Revolução.

Ao olhar para 1917, percebe-se que a construção de uma nova sociedade passa pelo estabelecimento de políticas de igualdade de gênero. Porém, só será possível dizer que o socialismo triunfou e que novas relações humanas são possíveis quando homens e mulheres estiverem em pé de igualdade.

A repercussão da Revolução Russa, sob o aspecto feminista, no mundo capitalista foi reduzida de acordo com a avaliação de estudiosos. As medidas avançadas “não foram de grande auxílio às mulheres, que só conseguiram adquirir direitos aos poucos, como de voto, de trabalho livre, usufruto de seu salário, liberdade de locomoção e de expressão, de forma diferenciada em países diversos”, destaca Swain. Ela ressalta ainda que o divórcio foi conseguido ‘a duras penas’ e o aborto ainda é tabu na maior parte dos países capitalistas. “Trabalho igual e salário igual ainda fazem parte de um sonho”, lamenta.

 

Um século depois

A Rússia atual está longe dos ideais de igualdade de gênero plantados e defendidos pelas mulheres. No primeiro mês do ano de 2017, a Assembleia Federal da Rússia (Duma) votou e decidiu pela descriminalização da violência doméstica no país caso a agressão física não seja “grave” e não ocorra mais de uma vez ao ano. O texto recebeu 380 votos favoráveis e apenas três votos contrários.

Então, conforme o que foi aprovado, se a agressão for anual, o responsável está livre de punição. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou que conflitos familiares “não constituem, necessariamente, violência doméstica”. Mas, de acordo com estatísticas do próprio governo da Rússia, 40% de todos os crimes violentos são cometidos no núcleo familiar. No total, 36 mil mulheres apanham de seus parceiros a cada dia e 26 mil crianças apanham de seus pais a cada ano.

A Rússia é um dos três países da Europa e da Ásia Central que não têm leis específicas destinadas à violência doméstica. Em pesquisa realizada, por telefone, com 1,8 mil cidadãos da Rússia, entre os dias 13 e 15 de janeiro de 2017, 19% dos russos declararam que “seja aceitável” bater na esposa, marido ou filho “em certas circunstâncias”. A margem de erro da pesquisa é de 2,5 pontos percentuais.

O projeto de lei ainda tem pela frente a Câmara Superior, onde não é esperada oposição. Em seguida, o projeto deve ser assinado pelo presidente Vladmir Putin, que já demonstrou seu apoio.

 

 

 

 

Para saber mais sobre o Dia Internacional da Mulher, consulte também a cartilha sobre o tema, produzida pelo Núcleo Piratininga de Comunicação e disponível na Biblioteca Digital do Sindijus: O 8 de março nasceu das lutas das mulheres socialistas