Imprimir

Encontro em Aracaju dos trabalhadores da Justiça Estadual do Brasil avaliou impactos das tecnologias

.

Durante dois dias, o Sindijus e a Fenajud promoveram o II Encontro Nacional dos servidores em Aracaju. Trabalhadores avançaram na avaliação de que o uso das novas tecnologias está em franca disputa

Encontro 14jun 750x510
Vieram servidores de diversas partes do Brasil, além de representantes e servidores do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE). O objetivo foi realizar, durante os dias 14 e 15 de junho, um debate que trouxesse contribuições de servidores dos vários estados sobre a virtualização dos processos de trabalho no segmento. O tema, sob outra perspectiva, foi abordado no Conselho dos Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil também promovido na capital sergipana no mesmo período.

Na abertura do Encontro, o coordenador geral do Sindijus, Jones Ribeiro, destacou a importância de refletir sobre essa temática. Ele lembrou que com a pandemia do coronavírus, uma das pautas da categoria foi usada em desfavor dos trabalhadores. Quando ocorreu a solicitação de que as atividades fossem feitas a partir de casa, para preservar vidas, os Tribunais disseram, com o auxílio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que os servidores poderiam ir. Mas como? Jones relembra que os servidores foram para casa sem as condições de trabalho necessárias. Sem que os trabalhadores tivessem a devida experiência, sem nenhum apoio dos tribunais.

“A consequência disso foram problemas de saúde, de trabalho, de ergonomia e até de corte de ponto, como no caso do companheiro Darlan, aqui de Sergipe, que era autoimune e teve que trabalhar presencialmente, porque o Tribunal não queria fornecer as condições de trabalho. Esse é um exemplo das transformações da justiça digital que têm impacto na vida dos trabalhadores. Por isso que precisamos discutir, em oposição a discussão que os, presidentes dos Tribunais de Justiça fizeram nesse Conselho. Ou os trabalhadores dos Judiciários se tornam sujeitos da história, e esse debate é importante para isso, ou estarão subordinados a mais injustiça, mais desigualdades e mais problemas no seu trabalho”, afirmou.

O sofrimento de cada dia

O Encontro foi dividido em dois momentos: o primeiro foi o seminário com mesas temáticas, já o segundo foi um ato com a entrega da Carta de Aracaju, documento que condensou todas as conclusões dos trabalhadores sobre os temas debatidos. Na discussão sobre ‘Os Impactos na Saúde dos Trabalhadores na era Justiça Digital’, o primeiro a falar foi o professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador dos temas de patologias sociais, sofrimento psíquico e suas relações com os diagnósticos da sociedade contemporânea, Heribaldo Maia.

De acordo com ele, para entender a questão da saúde mental do trabalhador e a relação com o trabalho, é preciso entender que apesar do sofrimento ser visto como algo muito privado, muito individual, ele também tem outras dimensões. É necessário entender que o sofrimento também não se reduz nem ao individual, nem ao biológico. Isso, explicou Maia, segundo várias pesquisas. Ele defende que o sofrimento também tem uma dimensão social, coletiva e até política. Nessa dimensão é possível ver como ela funciona e reflete um pouco da sociedade em que vivemos.

“Na idade medieval existia um sofrimento que era típico daquele modo que as pessoas viviam, daquela cultura, que era o sofrimento da acedia, ou seja, pessoas sofriam por causa de uma alta penitência pecaminosa, do isolamento etc. Hoje, essa nomenclatura de sofrimento não existe mais. É porque a medicina mudou e se alterou drasticamente aquela doença? As pessoas estavam mentindo? Não. É porque mudou o mundo e a forma como a gente fala sobre o nosso sofrimento”, refletiu.

O professor Maia afirmou que, atualmente, o sofrimento que acomete a população e os trabalhadores é muito diferente da acedia e até das histerias, comuns no final do século XIX. Hoje, as pessoas sofrem com depressão, ansiedade, esgotamento por estresse, cansaço ligado ao ambiente de trabalho. E isso está diretamente conectado com essa nova forma de vida em sociedade, onde a questão da produtividade é central.

“A gente tem que produzir muito, tanto no estudo, no trabalho, afetivamente. Tem que ser bom e perfeito em tudo. Produzir a perfeição e, mesmo assim, quando chega ao patamar de esmero, é temporário, pois outro sujeito vai nos atropelar. E alguns pontos são importantes para pensar essa mudança. Há uma sociedade que nos diz: seja você mesmo, nada é impossível, realize seus sonhos, seja feliz; mas, por outro lado, existe um elemento político que destruiu as possibilidades de partilha social, para que a gente realize nossas questões individuais. Você vê uma destruição dos sistemas de seguridade social pelo mundo inteiro, da saúde e educação pública, da aposentadoria, das regulamentações do mundo do trabalho etc. Tudo está sendo assolado, criando quase uma guerra de todos contra todos. Nessas circunstâncias, não existirá condições de ter uma vida digna e, em última instancia, não haverá possibilidade de ser um cidadão”, concluiu.

O pesquisador falou da dimensão do novo mundo do trabalho. Saiu de cena a máquina de datilografar nas repartições públicas, aquela papelada gigantesca, ou então, nas fábricas, as especializações em saberes únicos e isolados em uma cadeia de produção. Entrou a implementação do computador, de internet, de robótica e assim por diante, que faz com que o trabalhador seja flexível e cumpra mais de uma função. Ou seja, ele terá que ser um trabalhador que vai, de fato, trabalhar por três, por quatro, por cinco. Esta inserção da tecnologia, no caso do mundo digital, passa a ser vista como fator que precariza a vida do trabalhador e a culpa não é da tecnologia.

“Que é ótima. O problema é o que é feito com as inovações tecnológicas. Está sendo usada para quê? Somente para acumular capital. Para fazer com que as pessoas trabalhem muito mais tempo, por conta dessa ideologia da produtividade. Então, o reverso disso é a depressão, é a ansiedade, é o esgotamento, reflexo de um mundo que agora nos controla por essa ideia de quanto mais trabalho melhor, de prazos impossíveis, e que, por última instância, borra ou destrói a barreira que separava o ambiente de descanso e o torna em um novo território do trabalho. Quando você saia do trabalho antigamente não tinha WhatsApp, as notificações dos aplicativos de gestão de tarefas, não tinha o smartphone e suas mil utilidades. A casa era o privado, o estar com a família e amigos, o fazer outra coisa. Hoje, você nem vai para o trabalho, pois ele já está em sua casa, conectado e acessando as tarefas pela internet”, sentenciou.

A importância da boa vida

O contraponto na primeira mesa ficou por conta da mestranda Carol Costa, coordenadora da Fenajud e analista Judiciária de Serviço Social do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ela explanou como o debate sobre bem-estar é feito na entidade catarinense e como acrescentar novos conceitos – como o de uma boa vida – pode ser benéfico na resistência dos trabalhadores e trabalhadoras.

“Vínhamos fazendo um debate de saúde a partir do indivíduo trabalhador. Depois desses dois anos de pandemia, percebendo que isso não estava nos levando a muitos lugares, a nossa experiência, Santa Catarina, nos impulsionou a tentar construir uma perspectiva com as pessoas a partir de uma ideia de todo, de grupo. E aí veio o conceito de ter uma boa vida. Uma existência que seja de prazer para as pessoas, para que a luta ganhe outra dimensão, pois é importante o combate, às vezes é necessário o confronto, mas a união dos trabalhadores, através da criação do senso de comunidade, de pertencimento, e da alegria de estar ao lado dos companheiros e companheiras de jornada não pode ser esquecido. Deve ser reforçado. De novo: devemos lembrar que é preciso ter uma boa vida, pois esse também é um dos propósitos da nossa luta diária”, afirmou.

O Judiciário na dianteira de quê?

A avaliação da segunda mesa foi feita por Vera Miranda, gestora social, especialista em Gestão Pública e Desenvolvimento na Carreira e assessora técnica da Fenajufe no Fórum Permanente de Carreira e Gestão Pública do CNJ. Segundo ela, o Judiciário está há mais tempo trilhando o caminho da virtualização do trabalho, a inclusão de tecnologias disruptivas, a questão da produtividade. Tudo isso, sob uma ótica produtivista, neoliberalista, que percorre por dentro de um debate que também é necessário de incorporação de tecnologias, e sim, se houver tecnologias disruptivas que sejam utilizadas massivamente, mas promovam a inclusão real da população. Isso é muito importante para a melhoria dos serviços. Mas para os servidores, o importante é dar uma face humana, social ao impacto e os desafios desse processo.

“No entanto, o grande problema que estamos agora analisando é o fato de você ter uma busca pela eficiência do mais com menos. Um encanto, um certo fetichismo em torno das tecnologias como substitutas do processo humano. Por trás de toda boa tecnologia, existem pessoas. E pessoas fazem a diferença. A tecnologia ela só fará diferença, enquanto ferramenta, se bem utilizada. Vivemos um processo inverso, que é uma corrida louca pela busca de um grande impacto tecnológico em detrimento de pessoas. E isso, quando você pensa do ponto de vista de um país continental, com diferenças assimétricas, significa que não haverá inclusão de todos. Ao contrário, haverá a exclusão da grande maioria que não sabe como acessar, está à margem, inclusive, desse grande processo disruptivo das tecnologias do futuro”, lamentou.

“Hoje, nós estamos vendo é que o resultado dessa busca pela celeridade, e aumento da produtividade a qualquer custo, só porque tem boas ferramentas, tem adoecido os trabalhadores e tem nos colocado sob um olhar muito desumano. Parece mais fácil, porque, em tese, há uma grande velocidade no processo de produção, mas essa produção mais veloz e para você seria ideal se fosse resultar em menos tarefas, e não para as pessoas trabalharem mais. Então, diminuir a reposição dos quadros, porque se investiu muito em tecnologia como resposta, significa apenas que você está submetendo os outros trabalhadores a trabalhar por ele e pelo outro. De um lado uma população que não consegue acessar, do outro, trabalhadores em esgotamento porque a realidade na ponta nunca é a do projeto piloto original. E é isso que a gente está discutindo aqui, essa assimetria e como voltar ao velho debate de condições de trabalho, de jornada digna, de desconexão, agora, sob o olhar digital”, disse.

O seminário foi encerrado com a participação do professor doutor Vitor Filgueiras, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele adicionou ao debate a questão da intencionalidade que existe na criação de ferramentas e sistemas tecnológicos.

“E o que está em questão, nesse processo, é se essas tecnologias - através das relações que organizam e geram a sua operação - vão ser homogeneizadas por um processo de aumento da opressão e da dominação de determinados grupos. Sejam os proprietários, sejam, no caso do Judiciário, as cúpulas sobre os trabalhadores. Ou se os trabalhadores terão alguma participação nessa formulação e gestão. Ou seja, será um processo mais autoritário ou mais democrático? E esse é um processo de luta, mas tem que ser encarado dessa forma. Então, a piora das condições de trabalho, o aumento do adoecimento laboral, tudo isso está vinculado a uma hegemonia autoritária no desenvolvimento e gestão da tecnologia. E qualquer hipótese de melhora de cenário requer uma disputa pela ampliação da democratização na gestão e uso dos sistemas”, arrazoou.

Ato e entrega de carta

No segundo dia de atividades do Encontro de Lideranças da Fenajud, foi promovido um ato em frente ao hotel onde estavam reunidos os participantes do Conselho de Presidente de Tribunais. Nas várias falas feitas pelos dirigentes, não faltaram mensagens de apoio ao técnico judiciário e representante de base do Sindijus Lucas Oliva, que recentemente foi chamado de “inimigo” pelo novo desembargador do TJSE, Gilson Félix.

Uma delegação também foi ao local onde estavam os magistrados para entregar a ‘Carta de Aracaju’, que condensou os argumentos e conclusões dos trabalhadores reunidos no Encontro Nacional da Fenajud. O documento foi recebido pelo secretário do presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, Leonardo Lustosa.

No encontro, o coordenador geral do Sindijus, Jones Ribeiro, sugeriu ao assessor do Conselho de Presidentes que no próximo encontro dos magistrados seja criado um espaço para as manifestações das entidades sindicais. “Uma das coisas que o CNJ tem feito nos últimos anos e geralmente, em regra, os Conselhos e os Comitês têm adotado é a presença da entidade sindical. É importante ter uma visão ‘de baixo’ e o registro de sobre o que queremos é dialogar”, explicou.