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Lei Rouanet X 'CPI do Sertanejo': como funciona o incentivo à cultura?

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Especialistas explicam legislação cultural e comentaram a polêmica dos cantores sertanejos com cachês milionários de prefeituras

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A Lei Rouanet, nomeada hoje como Lei de Incentivo à Cultura, voltou a ser polêmica durante os últimos dias. Após a fala de Zé Neto contra a política cultural e a cantora Anitta , a captação de recursos para produção cultural ganhou diversos debates nas redes sociais.

A fala polêmica de Zé Neto gerou uma investigação do Ministério Público sobre contratos de shows de sertanejos pagos com dinheiro público de prefeituras pelo Brasil. Mas o que difere esse tipo de contrato da Lei Rouanet? Como o incentivo à cultura funciona?

Para responder essas perguntas, o iG Gente entrevistou Inti Queiroz, produtora cultural e assessora na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados de São Paulo, Bonne, presidente da Quebra Coco Records, e Silvia e Marklen Landa, sócios da Arquiprom, que produzem eventos culturais em São Paulo.


Lei Rouanet não capta dinheiro público

Diferente das fake news sobre a Lei, o incentivo é feito a partir da dedução fiscal. Inti explica que os projetos de artistas, produtores e trabalhadores da cultura são analisados pelo governo.

"Caso aprovados, os projetos poderão captar recursos de patrocínio em empresas públicas ou privadas descontados em até 4% do valor que as empresas devem de imposto de renda. Também é possível captar o patrocínio com pessoas físicas até 6% do valor devido ao imposto de renda, mas isso ainda é mais raro de acontecer, até porque apenas quem paga muito imposto acaba utilizando do mecanismo", afirma.

Bonne comenta que a Lei Rouanet é alvo de confusão por parte do público. "Muitos confundem, pensam que o dinheiro vem direto do governo, mas não é assim que funciona. A lei apoia a cultura e os projetos aprovados são financiados por instituições privadas, que recebem certos incentivos em troca", diz.


Artistas passam por burocracia para conseguir incentivo

Quem propõe projetos para a Lei Rouanet passa por diversos critérios, analisados pela Secretaria Especial de Cultura (SECULT). "A empresa proponente precisa inscrever o projeto, com detalhes de conteúdo e planilhas, ter cartas de anuência das entidades envolvidas e autorização das pessoas envolvidas. Enfim, é um processo bastante detalhado e complexo", explica Silvia Landa.

Inti lista as etapas dos trâmites para ter um projeto aprovado pela Lei Rouanet. "Primeiro temos a inscrição, que passa por uma avaliação inicial e, caso o projeto tiver certo e for de fato uma proposta cultural, recebe um número de Pronac para continuar a análise. Na sequência, passa por uma análise técnica por especialistas, que farão um parecer e se necessário pedem mais informações e documentos complementares até a aprovação", detalha e segue:

"Após aprovados, os proponentes buscam patrocínio nas empresas. Assim que o patrocínio é efetuado, começa efetivamente a execução do projeto conforme seu plano de trabalho apresentado e aprovado. No final do projeto, o proponente precisa fazer uma prestação de contas detalhadas à secretaria de cultura, com todas as atividades realizadas, além de apresentar notas fiscais, fotos e vídeos comprovando que realizou o objetivo do projeto com lisura e na legalidade".


Lei Rouanet X Cachês das prefeituras

Gusttavo Lima foi envolvido na polêmica após a declaração de Zé Neto. O Ministério Público investiga ao menos três apresentações do "embaixador" pagas por prefeituras. Um cachê de R$ 1,2 milhão e outro de R$ 800 mil surpreenderam o público . O que difere Lei Rouanet e os shows dos artistas sertanejos realizados por prefeituras é a falta de transparência. Segundo Inti, a contratação é feita pela lei de licitação pública, que permite a contratação sem teto de valores.

"O que se sabe são os valores pagos que obrigatoriamente tem que constar em Diários oficiais. Mas não se sabe como esses valores são gastos com os funcionários desses artistas, já que eles têm músicos acompanhantes, iluminadores, figurinistas", analisa Inti.

A produtora cultural explica que a Lei Rouanet também traz um teto para produção. "Há um limite de R$ 3 mil de cachê [apresentação de artista solo], que atualmente é bem pouco, para o artista. A lei também obriga o proponente de fazer tudo com muita transparência, com comprovação documental e o mesmo não acontece no caso destas contratações diretas", diz.

Bonne comenta que o que diferencia a lei dos cachês é o uso do dinheiro público. "No caso dos shows, esse dinheiro era público mesmo. É preciso entender a ligação das prefeituras dessas cidades com os produtores desses artistas", observa.

Os especialistas concordam que há falhas na Lei Rouanet , mas afirmam que ela segue importante para o crescimento da cultura no Brasil. "Por ser uma lei que utiliza o mecanismo de renúncia fiscal de empresas, boa parte delas tem interesse em patrocinar projetos culturais que possam dar muita visibilidade às suas marcas. Isso acaba excluindo do escopo da lei projetos igualmente importantes para o desenvolvimento social e territorial", explica Inti.

Para Marklen Landa, a Lei Rouanet foi quase destruída pelo governo federal atual. "Boa parte dos frutos dos esforços foram minados por uma política de corte profundo dos incentivos e orçamento, claramente anticultural, que envolveu o abandono dos principais espaços de cultura do país até a imposição de barreiras ao diálogo de agentes culturais com a sociedade civil e o meio empresarial", opina.

Silvia diz que apesar do enfraquecimento da Lei, a cultura precisa do incentivo. "A retomada da força da cultura e da economia criativa no país depende fundamentalmente de incentivos fiscais e do apoio do setor privado. Temos um mercado bastante tímido de empresas que já apostam e acreditam em cultura. O desafio é ampliar o espectro", pontua.

Segundo Inti, os 30 anos da Lei Rouanet ajudaram a realizar milhares de projetos culturais pelo Brasil. "Foi pela lei que o setor se estruturou, que muitas empresas surgiram, muitos cursos técnicos e universitários da cultura foram criados, e os milhões investidos ajudaram a gerar mais recursos para a economia brasileira, colocando o setor cultural como o quinto principal que contribui ao PIB brasileiro", analisa.

A produtora cultural também entende que a lei abriu espaço para outras leis de incentivo a cultura nas esferas estaduais e municipais. "Pela Rouanet, muitas outras leis de incentivo à cultura, bem como editais culturais, surgiram pelo país nos últimos anos, apoiando os projetos mais diversos, desenvolvendo a cultura brasileira e também apoiando territórios e comunidades".

Mas no futuro os artistas terão desafios. "Há uma única certeza: independentemente da configuração política que se desenhará para o Brasil em 2023, os agentes culturais terão de reconstruir as pontes com o mercado e retomar os ganhos que se perderam em meio ao vácuo e aos danos herdados da política federal recente", afirma Marklen.



Fonte: IG