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Marighella, o aguardado filme de Wagner Moura, enfim, disponível

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filme Marighella


Fonte: Esquerda Online

Por Carlos Zacarias

Foto: Reprodução

 

Após três anos de expectativas, Marighella, filme de Wagner Moura produzido em 2019, estreou no Brasil, mas não nos cinemas, como se esperava. E não foi por culpa da pandemia, mas da nova gestão à frente da Ancine, que desde a eleição de Bolsonaro dificulta a distribuição da obra pelo país. Não obstante o primeiro filme dirigido pelo ótimo ator baiano vir sendo apresentado em vários festivais, sendo saudado como dotado de grande qualidade, o desejo manifestado pelo presidente eleito em 2018 determinou a não-distribuição para os cinemas como pretendia o realizador, que queria lançá-lo em novembro, mês da Consciência Negra.

Mas as expectativas em torno da exibição de Marighella não arrefeceram e sua liberação para exibição na internet, segundo se diz feita pelo próprio Wagner Moura, não retiraram a aura de “filme proibido” que ele veio adquirindo ao longo desses anos de contendas com a burocracia que assumiu a direção da Ancine. Obviamente que assistir a um filme feito para o cinema no sofá da sala ou refastelado na cama não é a mesma coisa que no telão de uma sala escura, mas quem viu, e não foram poucos os que fizeram isso no fim de semana em que o filme foi liberado, cobriu-o de elogios.

Assisti a Marighella em novembro de 2020 num cinema em Salvador, onde a obra foi exibida em sessões especiais para que estivesse elegível a concorrer ao Oscar. Na ocasião fui ao tradicional cine Glauber Rocha e adquiri o último ingresso de uma das sessões que passaram nas três semanas em que o filme permaneceu em cartaz. O cinema estava com sua capacidade máxima permitida (50% da sala) toda ocupada e, segundo me informaram, havia sido assim em todos os dias. Havia muita expectativa de minha parte quanto ao filme e certamente do público que permanecia em silêncio na sala escura. Nos dias anteriores, os jornais locais haviam dado boa cobertura ao evento, inclusive nomeando as personalidades políticas e do meio artístico que haviam desfilado pela sala, como Maria Marighella, neta do ex-guerrilheiro, eleita vereadora de Salvador para o primeiro mandato poucos dias antes. Maria era dessas personagens a quem o filme dizia muita coisa, pois além de neta do guerrilheiro, também interpretava a mãe de Carlinhos na película.

Cobrindo a última fase da vida do comunista baiano, Marighella, de Wagner Moura, não decepciona. É dirigido com esmero e parte do tempo, muito especialmente nas cenas de ação, o diretor usa do recurso de carregar a câmera na mão, o que dá a sensação de agilidade, tensão e nervosismo pretendidas.

Todavia Marighella não é um filme de ação e apesar das cenas de explosão, dos tiroteios, das prisões e tortura, o que move o filme de Moura é o convite à reflexão sobre a conjuntura política (de ontem e de hoje) e a possibilidade de se enfrentar um regime (a ditadura) instaurado pela força (o golpe de 1964) de outro modo que não seja também pelas armas. Por conta disso, não são poucas as cenas em que as escolhas de Marighella são trazidas à cena, muito especialmente nos muitos momentos em que o líder da ALN discute com seus companheiros as possibilidades de enfrentamento da ditadura nas circunstâncias em que qualquer participação política tinha sido interditada e a única alternativa de luta parece ser empunhar um fuzil, uma metralhadora ou uma pistola. Da mesma forma, o espectador também acompanha o solilóquio do guerrilheiro, que decidiu por deixar para trás o filho Carlinhos (Renato Assunção e Francisco Matheus de Araújo) e sua esposa Clara (Adriana Esteves) e enveredar pelo caminho incerto da guerrilha, alternando o otimismo quanto à possibilidade de o “povo” vir em socorro dos lutadores, com a pungente constatação de que os revolucionários estão no mais profundo isolamento.

O filme de Wagner Moura se inspira em alguns dos últimos capítulos do livro do jornalista Mário Magalhães, Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. Magalhães também assina o roteiro enxuto, junto com Felipe Braga e o próprio Wagner Moura. O filme faz jus à narrativa frenética contida no livro, mas obviamente não se propõe a substituir a história e nem a leitura da obra de Magalhães e de outros livros também e até por isso, funciona muito bem com as escolhas que faz.

A propósito dessas escolhas, parte delas deram vazão a uma polêmica que diz respeito ao fato de que Wagner Moura optou por valorizar a condição racial de Marighella, que era um homem que hoje se diria negro sem nenhuma dúvida, mas que se assumia como um “mulato baiano”, como se vê pela documentação conhecida. A escolha de Seu Jorge para interpretar o guerrilheiro, que, aliás, surgiu no projeto depois que Mano Brown não pôde assumir a tarefa, tem este aspecto. Há, aqui, uma intenção manifesta do diretor em enfatizar a negritude do personagem, o que contrasta também com o personagem de Luis Carlos Vasconcelos, companheiro de Marighella, certamente a figura histórica de Joaquim Câmara Ferreira, que é chamado de “Branco” no filme. A escolha de Seu Jorge para o papel de Marighella, aliás, vem causando polêmica, em função da perspectiva colorista assumida por muitos segmentos, inclusive os que criticam esse aspecto no filme.

De fato, Marighella era um homem negro e este fato no filme, e também no livro de Magalhães, parece ter mais importância do que a historiografia sobre o personagem sugere. Quanto a isso, é absolutamente legítimo que as pessoas se indaguem sobre o significado de ser negro na trajetória de Marighella, pois é por perguntas como esta que a pesquisa histórica avança. Todavia, do que se deduz pela documentação, que não traz elementos que permitam os historiadores afirmarem que essa questão tenha assumido alguma centralidade na história que se pode contar de Marighella, em que pese o fato de que o comunista não ignorasse que era negro (como poderia?), e mesmo se admitindo que essa questão possa ter pesado em algumas de suas escolhas e também representar muito em diversos momentos de sua vida, não é possível trazer a questão senão como algo permitido pela liberdade poética e de criação. Ou seja, Marighella, embora se visse como um homem negro, ou como um mulato, filho de um italiano com uma descendente de escravizados vinda do Recôncavo, não achava que isso era mais importante do que suas escolhas políticas.

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A propósito dessas escolhas, convém mencionar que Marighella, que começou sua militância no PCB no início dos anos 1930 na Bahia, sofreu sua primeira prisão em 1936, quando já estava no Rio. Ainda seria preso em 1939, já no Estado Novo, que os comunistas inicialmente caracterizavam como fascista, permanecendo na cadeia até 1945, sendo beneficiado pela anistia. Nesse mesmo ano, foi eleito deputado federal constituinte pela Bahia, tendo destacado papel na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, onde atuou ao lado de outros 14 deputados do seu partido, mais o senador Luiz Carlos Prestes, formando a quarta força eleitoral da época, atrás apenas do PSD, da UDN e do PTB. Em maio de 1947 o PCB teve seu registro suspenso e no ano seguinte, em janeiro, todos os parlamentares também foram arbitrariamente cassados em função da Guerra Fria e da ofensiva anticomunista desencadeada no Brasil.

Marighella viveu na ilegalidade política quase por toda a vida, não importando se o país vivia sob uma democracia liberal ou sob uma ditadura. Entretanto, a situação de ascenso de lutas no início da década de 1960 permitiu ao comunista baiano e seus companheiros, que nunca declinaram da organização e da mobilização e que atuavam nas diversas frentes na clandestinidade ou semiclandestinidade, saírem às ruas para lutar pela legalização do PCB que, no fim das contas, foi mais uma vez abatido por uma nova escalada repressiva desencadeada pelo golpe de 31 de Março de 1964.

Logo em seguida ao golpe, no dia 9 de maio, Marighella foi preso pela polícia num cinema do Rio, após resistir bravamente a um cerco e à imensa brutalidade da repressão, inclusive após ser baleado. Solto em 31 de julho do mesmo ano, apenas em função da repercussão do caso, dirigiu-se à redação do Jornal do Brasil para dar o testemunho da brutalidade a que foi submetido. No ano seguinte, publicaria Por que resisti a prisão, um livro em que descreve o episódio de sua detenção num cinema na Tijuca, mas onde inicia, também, suas críticas ao PCB, o que o levaria a romper com o partido que militara por mais de 30 anos, em 1967, para fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN), a mais importante organização da guerrilha no Brasil nos tempos da Ditadura.

Marighella, o filme, retrata os últimos momentos do guerrilheiro baiano atuando pela ALN. O filme começa pelo assalto ao trem pagador e retrata também uma ação de “expropriação” a um banco. Em tais ações os revolucionários levantavam recursos para criar as condições para partirem para o campo e de lá desencadearem a ofensiva sobre a Ditadura, inspirados no modelo de revolução cubana. Nem a ALN ou qualquer organização guerrilheira chegou a ir para o campo para iniciar a guerrilha. Muito antes foram todas desbaratadas, numa ofensiva da repressão que, em dezembro de 1968, decretou o AI-5, impondo aos revolucionários a necessidade de reunirem os maiores esforços para iniciarem a guerrilha no campo e ao mesmo tempo para que lutassem pela libertação dos presos políticos, que eram barbaramente torturados nas prisões da Ditadura. Como decorrência dessa conjuntura, as organizações terminaram por empreender sequestros de diplomatas para trocá-los por prisioneiros, inclusive do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, numa ação que envolveu um comando da ALN e do MR-8 e que era desconhecida de Marighella, mas que é retratada no filme.

Dois meses após o vitorioso sequestro de Elbrick, que também é retratado num outro filme O que é isso companheiro?, de Bruno Barreto, inspirado na obra homônima de Fernando Gabeira, Marighella foi morto numa emboscada promovida pelo delegado Lúcio, na verdade Sérgio Paranhos Fleury (Bruno Gagliasso). O episódio deu ensejo a uma fake news que circulou em 2019 a partir do artigo do investigador de polícia, Aurílio Nascimento, publicado no jornal Extra. No texto, o articulista reproduziu uma versão falsa da morte de Marighella, versão que circula nos livros de Ustra e nos grupos de extrema direita, como se o guerrilheiro, que morreu sem poder reagir, tivesse atirado, junto com seus “seguranças” (que não existiam) contra as forças da repressão. No suposto tiroteio, a agente Estela Borges Morato foi morta, o que faz com que a extrema direita inclua a policial no rol das “vítimas do terror”.

As questões trazidas pelo filme de Moura, como é incontornável numa obra cinematográfica, referem-se muito mais ao presente do que ao passado, mas isso não constitui de modo algum um problema. Quem quiser se aprofundar no conhecimento de Marighella, deve buscar a historiografia sobre o assunto, que é relativamente vasta e consistente. Para quem procura, entretanto, uma obra de cinema que lhe inspire resistência, o filme de Wagner Moura é uma excelente pedida, tanto pela qualidade da obra em si, que traz intepretações convincentes, como pelo fato de que Marighella suscita debates, sugere caminhos, aponta alternativas, expõe os erros e eventuais acertos de escolhas que foram feitas no passado e que devem servir para que todos sejamos capazes de aprender com a história, ainda que partindo de uma obra feita para o cinema.

Veja o trailer oficial do filme