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Não existe democracia sem uma sociedade civil forte e atuante

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Por Cassio França

Não existe democracia sem uma sociedade civil forte e atuante

Enquanto a população brasileira não tiver assegurado os seus direitos essenciais para viver com dignidade e igualdade de tratamento e oportunidades, não haverá democracia de fato no Brasil

Meu projeto 91Desde o início da nova república, o ano de 2022 será marcado na história brasileira por ter sido o de maior incerteza em relação aos rumos da democracia no país. Seja pelas ameaças diretas do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral eletrônico ou pelos questionamentos à legitimidade e ao exercício da função de juízes da suprema corte do país, tivemos inúmeros episódios que levaram centenas de organizações da sociedade civil a amplificarem suas vozes em defesa da democracia. Nesse contexto, por exemplo, a Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito, lida em 11 de agosto de 2022, na faculdade de direito da USP, simbolizou os receios e anseios de mais de um milhão de pessoas.

Após o término de uma eleição presidencial tensa, repleta de manifestações de ódio, desqualificação de pesquisas eleitorais e órgãos de imprensa, demonização de adversários, assédio eleitoral, ameaças e mortes de cidadãos que manifestaram suas preferências eleitorais, a maioria da população brasileira optou por descontinuar o atual governo e legitimar a proposta de oposição, liderada por Luiz Inácio Lula da Silva.

A partir desta nova conjuntura política, este ensaio se desafia a trazer elementos que dialogam com duas perguntas, sobretudo porque elas se impõem para as organizações da sociedade civil (OSCs): i. A democracia brasileira segue em risco? ii. Quais são os pontos de atenção que devem ser observados pelas organizações da sociedade civil, a fim de estancar retrocessos e amplificar direitos sociopolíticos?

Em relação aos riscos democráticos é necessário enfatizar que enquanto a população brasileira não tiver assegurado os seus direitos essenciais para viver com dignidade e igualdade de tratamento e oportunidades, não haverá democracia de fato no Brasil. Há a necessidade de estabelecer como sinônimos as ideias de democracia e de garantia de princípios essenciais da dignidade humana e da cidadania. A Constituição Federal do Brasil expõe em seu art. 6° os direitos indissociáveis ao ser humano, como os direitos à educação, de qualidade, saúde, alimentação, trabalho, lazer, segurança, moradia, proteção à maternidade e infância, assim como o direito à assistência social. Porém, esses direitos não estão assegurados. Portanto, a democracia brasileira segue em risco? A partir de uma leitura que considera a dignidade da população brasileira, sim.

Se considerarmos as referências utilizadas pelo Instituto V-Dem (Varieties of Democracy), vinculado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, o Brasil não vai além de uma democracia eleitoral, a mesma que esteve em risco constante em 2022. Em seu continuum de regimes políticos, há quatro classificações que buscam categorizar os diferentes países do norte e sul global, quais sejam, autocracias fechadas, autocracias eleitorais, democracias eleitorais e democracias liberais. Em seu último relatório, o país sequer é classificado como uma democracia liberal porque tem ameaçado as liberdades de expressão, imprensa, organizações da sociedade civil, as regras do jogo democrático e pesos e contrapesos entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O que argumento neste ensaio é que apesar de o país ser considerado eleitoralmente democrático, há uma longa jornada até considerarmos o Brasil um país, de fato, democrático. Nessa jornada, direitos civis, sociais, políticos e ambientais ainda devem ser assegurados.

O primeiro ponto de atenção a ser mencionado para as organizações da sociedade civil é que, ao qualificar a democracia também como garantia de direitos essenciais para a dignidade humana, corre-se o risco de tensionar a concepção eleitoral e liberal de democracia e, consequentemente, gerar conflitos com setores da sociedade que não compartilham da mesma visão de mundo. Luís Felipe Miguel, em seu livro Democracia na Periferia Capitalista, tem feito reflexões interessantes sobre como a garantia e ampliação da agenda de direitos no Brasil tem causado mal estar em setores do grande capital e de políticos conservadores que, como forma de refutar essa ideia, prefere colocar em xeque a nossa democracia eleitoral. O golpe militar de 1964 e o golpe civil de 2016 podem ser analisados sob essa perspectiva. Isto é, movimentos de avanços sociais são freados com o desmantelamento das regras do jogo. No Brasil, a lógica de avanços e recuos democráticos pode ser analisada como avanços e recuos da agenda de direitos. Nesse sentido, a radicalização da democracia pode gerar tamanha tensão que, a depender da correlação de forças sociais, políticas e militares, pode levar a retrocessos civis.

O golpe militar de 1964 e o golpe civil de 2016 podem ser analisados sob essa perspectiva. Isto é, movimentos de avanços sociais são freados com o desmantelamento das regras do jogo. No Brasil, a lógica de avanços e recuos democráticos pode ser analisada como avanços e recuos da agenda de direitos

A adesão e comprometimento ao novo governo que se inicia em janeiro de 2023 pode ser compreendido como um segundo ponto de atenção. Os governos FHC (em menor grau), Lula da Silva e Dilma Rousseff compartilharam de valores semelhantes aos de parte expressiva de organizações da sociedade civil. Como manifestação de apoio político e desejo de conduzir processos e políticas, muitas lideranças de ONGs, movimentos sociais e sindicatos aderiram formalmente aos governos. Essa adesão trouxe, pelo menos, duas externalidades negativas: o enfraquecimento de organizações sociais, uma vez que muitas tiveram que capacitar novas lideranças, o que toma tempo, e a perda do ponto de equilíbrio entre apoiar um governo e manter sua postura autônoma e crítica ao mesmo governo. Não existe democracia sem uma sociedade civil forte, com capacidade de produzir o contraditório para, inclusive, contribuir de forma efetiva com as políticas públicas.

Por fim, em uma relação com governos, as organizações da sociedade civil têm interesses múltiplos e de diferentes naturezas. Justamente por ter essa característica multifacetada, as OSCs devem estar atentas para não pulverizarem esforços, sem ter a capacidade de ter focos coletivos de atuação.

Há agendas que se impõe pela urgência do momento histórico e que não podem deixar de ser evidenciadas: a defesa incansável de uma democracia que garanta direitos, a promoção do enfrentamento a todos os tipos de racismo e os esforços coletivos para promover mitigação, adaptação e justiça climática em todas as agendas setoriais são temas fundamentais que devem servir de referências.Ainda que a variedade de agendas seja expressão da diversidade de pautas das organizações da sociedade civil, há de se ter alguma conexão entre elas. Uma sociedade democrática, com um modelo de desenvolvimento que responda às urgências climáticas, que promova equidade racial, social e econômica tem força e legitimidade para se tornar a agenda comum das organizações da sociedade civil.

Cassio França é cientista político, mestre, doutor em Administração Pública e Governo e secretário-geral do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).



Fonte: Nexo