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O que é patriotismo e nacionalismo

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Para entender as ideias de patriotismo e nacionalismo, e como ela vem sendo usada recentemente por líderes de extrema direita como Bolsonaro, o Nexo entrevistou na quinta-feira (7), por e-mail, Daniel Gomes de Carvalho, que é doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), professor e pesquisador na área de História Moderna na UnB (Universidade de Brasília), e autor do livro “Filosofia para Mortais”.

Reproduzimos a entrevista abaixo.

 

O que é patriotismo e o que é nacionalismo?

Daniel Gomes de Carvalho: Embora as duas ideias se confundam no discurso político contemporâneo, de um ponto de vista histórico, é possível dissociarmos os conceitos de patriotismo e nacionalismo. Afinal, o termo “nacionalismo” aparece pela primeira vez no final do século 18 e ganha força no século 19, em estreita relação com o romantismo e com a própria consolidação do Estado-nação. O termo patriotismo, em contrapartida, possui uma longa história.

No século 18, os pensadores iluministas pensavam o patriotismo como um sentimento de amor à própria terra, digno das repúblicas e dos homens livres, e não estaria, de forma alguma, associado à ideia de “soberania da nação” ou de submissão a um Estado ou governo.

Naquele momento, a grande referência eram os holandeses, que se autodenominaram “patriotas” na longa luta, a um só tempo político-econômica e religiosa, contra os espanhóis (1568-1648). O escocês Adam Smith (1723-1790), na “Teoria dos Sentimentos Morais”, recorreu à história romana para dizer que existem dois tipos de patriotismo: o patriotismo de Catão, “de espírito forte, porém tosco”, que busca destruir as outras nações; e o patriotismo de Cipião, “expressão liberal de um espírito mais ilustrado e mais amplo”, o qual é solidário aos outros povos.

O verdadeiro patriota, diz Smith, é o britânico que se felicita com a prosperidade “da China ou do Japão”. O verdadeiro patriotismo, em suma, não é inimigo do cosmopolitismo, mas é por ele complementado. Por isso, [Immanuel] Kant [1724-1804] chamava de “verdadeiros cosmopolitas” aqueles que buscavam o bem estar do mundo inteiro sem, com isso, sacrificar o amor a própria família e a pátria ou abandonar a própria identidade. O verdadeiro patriota, portanto, é favorável ao debate e à crítica, pois eles promovem o bem comum. Se concordarmos com Kant, podemos dizer que o patriotismo, embora exista, é algo raro nos meios políticos.

Foi durante a Revolução Francesa que, para desqualificar os revolucionários, o abade Augustin Barruel (1741-1820), um dos primeiros pensadores reacionários da história, em suas “Memórias para Servir na História do Jacobinismo” (1797), utilizou o termo “nacionalismo”: “o nacionalismo ocupou o lugar do amor geral (…) Foi assim permitido desprezar os estrangeiros, enganá-los e ofendê-los”. Para ele, o nacionalismo era o oposto do patriotismo, pois associava-se a um amor cego ao estado e ao ódio aos estrangeiros, tudo em nome do “povo” e da “vontade geral”. A palavra nacionalismo, assim, surgiu de maneira pejorativa.

A despeito das opiniões de Barruel, é fato que a ideia de nacionalismo ganhou força no século 19. Após a Revolução Francesa e outras várias revoluções na Europa e América, o rei e a tradição deixaram de ser o sustentáculo das comunidades políticas. A partir de então, por que deveria eu obedecer ao poder, se ele não é mais fruto de uma tradição ou governado por alguém escolhido por Deus? Nesse momento, foi preciso criar uma nova forma legitimidade para o Estado, e daí vem a calhar a ideia de nacionalismo. São inventadas novas tradições, são criados símbolos, busca-se padronizar as línguas nacionais e, sobretudo, é forjada a ilusão de que todos os povos de um determinado território têm um passado em comum. Nesse sentido, o projeto jacobino de escolarização universal, ao difundir narrativas específicas sobre a nação para as crianças, tem um papel central. A ideia de nacionalismo, como sintetizou [o historiador] Luis Edmundo Moraes, da Universidade Federal Fluminense, estaria ancorada em três ficções: a ideia de que existe um “povo” único ao longo da história; a ideia de que existe um “povo” com características próprias e exclusivas; a ideia de que apenas o Estado soberano pode perpetuar essa unidade.

Esclareço a partir de um exemplo. Em “A Democracia na América” (1835), Alexis de Tocqueville (1805-1859), retratava a pluralidade como um dos traços essenciais dos EUA. Para ele, o fato de a nação ter sido construída em grande parte por imigrantes com distintas religiões é um dos fatores que, aliado à grande disponibilidade de terras e à ausência de Estados vizinhos, inviabilizou a existência de uma nobreza e consolidou uma ideia específica de liberdade e igualdade. O autor do principal panfleto pela independência dos EUA, Thomas Paine [1737-1809], era ele próprio um imigrante e um abolicionista. Portanto, um nacionalismo pouco inclusivo e baseado na exclusão dos imigrantes, como defendido por diversos setores hoje nos EUA, só é possível a partir de um esquecimento específico do passado e a partir de uma construção historicamente equivocada do que é o “povo” americano. A verdade é que a história do povo americano é marcada pela escravidão, por um dos maiores processos de imigração da história e pelo massacre sistemático das populações indígenas.

Como os políticos podem usar o patriotismo em seus discursos?

Daniel Gomes de Carvalho: Novamente, se me permite, farei uma breve digressão histórica para responder. Vimos que esse “povo” idealizado nos discursos nacionalistas ou patriotas – utilizo aqui os termos como sinônimos, já que esse é o uso que se faz no presente – não existe. A verdade é que as nações humanas são caracterizadas, no presente e no passado, pela desigualdade e pela diferença, e são atravessadas por formas seculares de exploração e violência. O patriotismo do século 18 buscava conciliar a ideia de amor à terra dos pais com um projeto cosmopolita. O nacionalismo dos séculos 19 e 20 teve como objetivo apagar as diferenças e criar a noção de que cada país possui traços próprios. É por isso que Benedict Anderson (1936-2015) definia a nação como uma “comunidade imaginada”, de modo que “a essência de uma nação consiste em que todos os tenham muitas coisas em comum e, também, que tenham esquecido muitas coisas.”

Se toda nação é feita mais de esquecimentos do que de lembranças, o discurso nacionalista pode ser utilizado pelo Estado ou pelas classes dominantes para dizer que essas diferenças, explorações e violências não existem. Em outras palavras, em vez de percebermos as injustiças que sofremos por sermos negros, mulheres, operários ou nordestinos, eu as esqueço para servir “à nação”. Por isso, Eric Hobsbawm (1917-2012), em “A Invenção das Tradições”, definiu o nacionalismo como “uma construção mental imposta à realidade social para a estruturar, e que procura agrupar elementos igualmente heterogêneos”. O nacionalismo, assim, seria uma forma de ideologia, que poderia ser utilizada para nos coagir a determinadas ações e servir a interesses específicos.

Os exemplos mais agudos desse uso, sem dúvida, estão no século 20. No século 17, John Milton (1608-1674) escreveu “Areopagítica”, clássica defesa – dentro dos limites de sua própria época, claro – da liberdade de expressão e de imprensa. Nesse texto, o autor sustentou que o dissenso é o pai de todo o progresso: todas as discordâncias, longe de enfraquecerem a nação, são aquilo que a faz progredir, por meio do debate racional e da crítica. O ditador italiano Benito Mussolini, no século 20, disse o inverso: toda diferença enfraquece a nação e, por isso, é uma erva daninha que deve ser removida. Com efeito, em um dos seus mais conhecidos escritos, sustentou que “um graveto se quebra facilmente, mas não um feixe, símbolo de unidade, força e justiça”. Isso nos mostra, diga-se de passagem, que, infelizmente, a história está longe de ser um progresso da tirania em direção à liberdade, como já se sustentou.

No regime de Hitler, essa concepção é levada às últimas consequências: o povo alemão só se efetiva a partir da exclusão do outro, de forma que o extermínio físico e simbólico das diferenças acaba por ser a própria maneira de forjar a nação e fortalecer a pátria. A ideia de nacionalista, então, conhece aqui sua forma mais violenta e excludente. Embora Karl Marx, em seus textos, tenha se oposto com veemência ao nacionalismo chauvinista, não foram poucas as vezes que o século 20 testemunhou aparatos estatais, dirigidos pela esquerda, excluindo uma dissidência a pretexto de preservar a revolução materializada pelo estado.

Mas a ideia de nacionalismo, embora tenha surgido em estreita ligação com o Estado e uma burguesia em ascensão, está longe de ser estanque. Essa ideia possui uma história, e já foi apropriada também pelas próprias dissidências que ele muitas vezes perseguiu. Podemos pensar, na atualidade, nos nacionalismos centrífugos, como o catalão ou o escocês. Durante a Guerra Fria [1945-1991], sobretudo no Terceiro Mundo, os chamados “nacionalismos de esquerda” ou “nacionalismos anti-imperialistas” também foram utilizados como armas de contra inimigos específicos. Nesse sentido, trata-se de esquecer as diferenças – nacionalismo, reitero, sempre diz respeito mais a esquecimentos que lembranças – para promover a industrialização do país, para garantir a igualdade social ou para unir o povo contra uma invasão estrangeira. Encontramos isso, por exemplo, na Iugoslávia de Tito, na Cuba de Fidel Castro ou nos exércitos da Índia e do Vietnã.

Por que voltou-se a falar tanto em patriotismo no Brasil?

Daniel Gomes de Carvalho: É evidente que toda essa discussão assume cores bastante particulares se pensarmos no caso brasileiro, um país que detém uma das maiores desigualdades do mundo. Trata-se de um país que conviveu, na maior parte de sua história, com a escravidão, com uma profunda desigualdade social e com o genocídio dos povos indígenas. Como falar em nacionalismo em um país no qual uma parte do país massacrou a outra? Como unir povos que, historicamente, nunca foram unidos? Na atualidade, como dizer que fazem parte da “nação” brasileiros que vivem na pobreza extrema, abandonados por seus pares? A propósito, na semana passada, vi um jornalista de uma grande rede de televisão brasileira comentar que o “discurso do nós contra eles” foi inventado por governos recentes; uma breve visita à história do Brasil seria suficiente para demonstrar o absurdo dessa afirmação.

O Brasil Colonial (1500-1822) foi marcado, nas célebres palavras do historiador Sérgio Buarque de Holanda, pela “diferença e pela indiferença”, de modo que os habitantes dos territórios da coroa portuguesa não possuíam quaisquer sinais de “identidade nacional”; a palavra “brasileiro”, aliás, referia-se, até o século 19, àqueles que trabalhavam com pau-Brasil. Portanto, era fundamental para o Império (1822-1889) inventar essa unidade fictícia com vistas a manter a obediência dos súditos e a unidade do Estado.

É por isso que, no século 19, a literatura romântica brasileira buscou exaltar a natureza – “na minha terra tem Palmeiras onde canta o sabiá” – ou o indígena, como feito em Iracema (1865), romance de José de Alencar; e é importante notar que o mesmo foi feito com a Pocahontas, nos Estados Unidos, e Malinche, no México. Trata-se, claro, de um indígena idealizado, visto como parte da natureza, e não como um ser humano dotado de história. O indígena “real”, por assim dizer, continuava excluído da cidadania no Império Brasileiro

Mais tarde, o botânico e viajante Carl Philipp Von Martius (1794-1868) descreveu o brasileiro como a união das três raças: o branco, o negro, o índio. Assim, a partir da década de 1860, o negro foi incluído na equação do povo brasileiro, e, a partir de então, o brasileiro visto como fruto de uma miscigenação harmônica e sensual de todas as raças. Era o mito da “democracia racial”, que conheceria uma longa história em nosso país. Perceba que o mito foi construído enquanto a escravidão era realidade; trata-se de uma forma, portanto, de mascarar uma realidade que, inegavelmente, era terrível para uma parcela imensa da população do Brasil.

O ensino de história e de geografia, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tiveram papel determinante nesse processo. Escrever uma história e uma geografia “do Brasil” e ensiná-las nas escolas era fundamental para criar uma noção de unidade nacional; as crianças do Nordeste, assim, aprenderiam que os bandeirantes são “seus antepassados”, ao passo que as crianças do sul aprenderiam que o cerrado é a “sua natureza”. Vale lembrar que, no século 19, a América colonizada pelos espanhóis fragmentou-se em várias repúblicas. O Brasil correu o mesmo risco: guerras civis sangrentas como a Balaiada no Maranhão, a Farroupilha no Rio Grande do Sul ou a Cabanagem no Pará ameaçavam a frágil unidade nacional. A ideia de “nação” deveria ser infundida na mente do povo a fim de evitar novas guerras civis e preservar a unidade.

O nacionalismo, portanto, foi utilizado em nossa história para preservar uma situação social que não necessariamente era desejada ou desejável pela maioria. Penso que, na atualidade, isso não é diferente. A ideia de “nação” continua sendo utilizada para representar um projeto específico de país; aqueles que a ele se adaptam são verdadeiros “patriotas”, ao passo que os diferentes são “inimigos da nação”. Durante os anos de Ditadura Militar (1964-1985), era a isso que se referia o lema do governo “ame-o ou deixe-o”.

É truísmo dizer que momentos de crise, como na atualidade, são mais permeáveis a essas formas de discurso nacionalistas, especialmente por elas fornecerem respostas simples a problemas tão complexos quanto os nossos. Certamente, é mais confortável acreditar que os problemas de nosso país foram causados por um único partido em poucos anos do que tentar entender que as razões, na verdade, são múltiplas e variadas, e nunca podem ser pensadas sem levar em conta o contexto internacional.

Mas, da mesma maneira que conversamos no caso da história mundial, é preciso pontuar que isso não é toda a história. Muitos grupos buscaram outras maneiras de entender o que é “ser brasileiro”. Muitos modernistas, por exemplo, buscaram uma ideia de identidade nacional nas comunidades rurais, sertanejas e indígenas, isoladas no tempo e no espaço, impermeáveis ao cinema, ao rádio e a cultura norte-americana. Com isso, nomes como Mário de Andrade (1893-1945) estavam rompendo com a associação entre popular e “rude” ou “exótico”. Foi nesse sentido, por exemplo, que Ouro Preto, até então um tanto esquecida, foi considerada monumento nacional em 1933. A linguagem popular, tentará mostrar Villa Lobos não seria imperfeita, mas sim brasileira. Outros, como Oswald de Andrade (1890-1954), pensarão a ideia de nação não como uma “mistura idealizada”, como faziam os racistas do século 19 e 20, mas de forma mais dinâmica, como expresso no movimento antropofágico e, mais tarde, no tropicalismo.

Dessa forma, penso que é possível, e muitos tentaram fazê-lo e fazem até hoje, buscarmos uma ideia de pátria e/ou nação que, mais próxima do ideal iluminista, dê conta de nossas necessidades de união – tão prementes e legítimas na atualidade – de maneira a não excluir o outro.

O que ocorre quando um setor ideológico captura para si símbolos nacionais, como a bandeira, as cores do país e o uniforme da seleção de futebol?

Daniel Gomes de Carvalho: Nesse sentido, a partir de tudo o que já discutimos, a resposta a essa pergunta é: nada novo sob o sol! A captura de emblemas nacionais por um grupo contra o outro representa é apenas mais um capítulo dessa longa disputa simbólica – que é também uma luta social –, iniciada a partir da Revolução Francesa: se não possuirmos reis ou uma tradição sagrada a qual nos reportarmos, o que definirá nossa identidade como nação? Hoje, como outrora, há projetos mais ou menos excludentes, que privilegiam uma forma de identidade em detrimento de outras.

Desde a década de 1970, construiu-se o mito do enfraquecimento dos nacionalismos a partir de um processo de globalização sem precedentes. A história, como de praxe, traiu essas expectativas: a ascensão de regimes com discurso nacionalista agressivo na década de 2010, no Brasil e no mundo, é em grande parte fruto das contradições oriundas desta própria globalização. Muitas vezes, setores do discurso acadêmico europeu e norte-americano ocultam esse fato ao taxar esses regimes de “populistas”, como se tratasse de um desvio autoritário meramente político.

Em 2020, a crise mundial acelerada pelo coronavírus ameaça a própria possibilidade de existência desta globalização e, por isso, impõe desafios ao que será nossa ideia de nação daqui em diante. Se o homem não existe sem os seus símbolos, é preciso tomarmos cuidados e escolhermos àqueles que serão nossos aliados e nos ajudarão a ter uma vida mais digna. Assim, podemos criar, como já se tentou no passado, formas de patriotismo ou nacionalismo menos excludentes.


Conteúdo publicado pelo Nexo. Autor: João Paulo Charleaux, repórter especial do Nexo.

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters