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Quem ganha com a crise?

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formacao 18-05

A ideia de que a pandemia do novo coronavírus levará a ganhos geopolíticos para a China vem tornando-se parte de um senso comum no Brasil. Esse argumento foi expressado de forma irresponsável, difamatória e xenófoba pelo ministro da Educação brasileiro, por exemplo. Contudo, a suposição de ganhos geopolíticos para a China é uma afirmação peremptória, que precisa ser bem estudada. Antes de chegar a uma conclusão, é necessário analisar cuidadosamente: a pandemia que vivenciamos levará a uma mudança profunda da ordem mundial – ou seja, trata-se de um ponto de ruptura ou as consequências serão conjunturais? Ademais, a pandemia de fato beneficiará a China, do ponto de vista geopolítico?

Embora a crise esteja se desenrolando no momento presente, permeada por fatores desconhecidos e incertezas, já existe um prolífico debate acadêmico sobre o tema, com a participação de nomes reconhecidos da área de Relações Internacionais e textos publicados em revistas tradicionais da área, como a Foreign Policy e a Foreign Affairs. Como seria esperado, há desacordo entre os acadêmicos. Para o professor emérito de Harvard, Joseph Nye, a crise sanitária não trará modificações importantes para a ordem internacional e não beneficiará a China. Por outro lado, o ex-secretário de Estado, Henry Kissinger, declara que a pandemia alterará a ordem internacional de forma profunda. Uma análise mais equilibrada foi apresentada por outro professor de Harvard, Stephen Walt, que vê a possibilidade da crise acelerar a transição de poder em direção à Ásia, embora muitas questões ainda estejam em jogo e haja a possibilidade de reação dos Estados Unidos. Como síntese, transparece a ideia de que a crise sanitária pode acelerar mudanças geopolíticas já em curso, mais que provocá-las.

Para ter uma visão mais clara sobre o assunto, um caminho interessante é analisar como a crise impacta a preponderância dos Estados Unidos e a emergência chinesa, levando em consideração a dimensão material – econômica e militar – e também a dimensão ideacional – o poder das ideias e instituições. Neste último caso, trata-se do poder ideológico e institucional, da expansão de ideias de visões de mundo que fazem com que a preponderância estadunidense possa ser aceita, ao menos em determinados círculos. O poder ideacional refere-se, portanto, à aceitação de ideias difundidas pela potência hegemônica, como o livre comércio e a democracia liberal.
Passemos, em primeiro lugar, à análise dos fatores materiais que contribuem à preponderância geopolítica dos Estados Unidos. Do ponto de vista econômico, a pandemia é prejudicial para ambos, pois gera uma crise econômica de grandes proporções. A contração de 6,8% do PIB chinês no primeiro trimestre de 2020 colocou uma pausa em um ciclo de prosperidade e crescimento econômico que dura 28 anos ininterruptos. No caso dos Estados Unidos, as consequências da paralisação também são fortemente sentidas e levaram a protestos, clamando pela retomada.

Contudo, o FMI prevê que as perdas dos estadunidenses devem ser maiores ao longo de 2020. De acordo com relatório do organismo, a contração da economia estadunidense será de 5,9% este ano e haverá recuperação em 2021. A projeção positiva para o ano que vem, no entanto, parte do princípio de que as medidas de isolamento social não serão necessárias no segundo semestre de 2020. Contudo, tanto o momento de retomada das atividades, quanto a possibilidade de novas ondas da doença, permanecem como incógnitas. Portanto, a previsão do FMI é bastante otimista. A ampliação da crise econômica tornaria o impacto da Covid-19 na ordem internacional ainda mais profundo.

Por outro lado, do ponto de vista militar, a crise não tem grandes consequência em termos de perda do poder estadunidense – ao menos no médio prazo. Como apontado por Nye, a projeção global dos Estados Unidos, que contam com bases militares ao redor do mundo, e o fato de que o país se localiza em uma região privilegiada, sem conflitos geopolíticos em sua vizinhança, não será alterada pela pandemia. Ao mesmo tempo, eles mantêm-se como a potência que mais gasta com Defesa no mundo. De acordo com dados do Instituto Internacional para a Paz de Estocolmo (SIPRI), o gasto militar norte-americanos corresponde a 38% do total mundial, enquanto o chinês corresponde a 14%.

Embora Pequim tenha aumentado seus gastos com defesa, Washington não fica atrás, ampliando-os com ainda mais rapidez. Assim, a pandemia do coronavírus não parece ter impacto nessa importante dimensão da preponderância estadunidense no médio prazo. Todavia, investir mais em questões militares é uma característica dos poderes declinantes e, embora a pressão dos gastos em defesa no orçamento total norte-americano ainda não seja grande, uma crise econômica prolongada pode pressionar pela diminuição. Trata-se de uma possibilidade, no entanto, que vai depender de qual será o impacto real da crise econômica e quão eficiente será a Casa Branca em promover ações para minimizá-la e superá-la.

Do ponto de vista ideacional, a situação é ainda mais incerta. A forma como ambos os países lidaram com a crise sanitária teve pontos problemáticos e manchou suas imagens internacionais. No caso chinês, o governo tentou abafar a crise em seus primórdios, silenciando um dos médicos que tentara avisar sobre sua gravidade. Contudo, o seu modelo político foi eficiente no momento de aplicar o isolamento social e controlar a crise sanitária. A China conseguiu evitar o colapso do seu sistema de saúde construindo hospitais exclusivos para a Covid-19 em tempo recorde e logrou impor o isolamento social usando seu mecanismo de vigilância estatal. Após o pico da doença no país, a China se mostrou capaz de fazer doações de equipamentos de proteção individual para diferentes países, escolhendo o destino dos recursos de forma estratégica, o que ficou conhecido como diplomacia da máscara.

No caso estadunidense, o governo de Donald Trump minimizou a crise, permitindo que o país se tornasse o epicentro da doença. Hoje, as mortes por Covid-19 ultrapassam 90 mil no país. Faltaram equipamentos de proteção individual, revelando a dependência dos Estados Unidos à China nessa dimensão. Washington pôde reagir: determinou que empresas passassem a fabricar EPIs e respiradores, impediu a exportação de tais materiais, confiscou encomendas e conseguiu barganhar para que empresas rompessem contratos de exportação com outros países e destinassem sua produção aos Estados Unidos. Tais avanços não ocorreram sem custos para a imagem do país: suas ações têm sido caracterizadas como pirataria moderna.

A Casa Branca falha, ainda, por não ter conseguido liderar uma resposta global – o que era de se esperar de uma potência hegemônica. A sua estratégia atual é atacar a Organização Mundial da Saúde (OMS), por esta pretensamente ter sido demasiadamente benévola em aprovar as respostas chinesas. Os Estados Unidos prometem retirar seu financiamento à organização – reforçando a posição unilateral do governo Trump em política externa. Nesse ponto, cabe recordar que, no pós-Segunda Guerra, os Estados Unidos foram os arquitetos das instituições multilaterais de caráter universal, liderando a construção e detendo controle sobre as mesmas. A postura unilateral reiterada por Trump, no entanto, não é uma novidade. George W. Bush já sugeria que a ONU apenas seria útil caso legitimasse as ações de seu governo.

A pandemia não chegou ao fim e, consequentemente ainda há muito o que acontecer. A narrativa de incapacidade e falhas de Washington pode ser revertida, especialmente se o país lograr liderar o desenvolvimento de tratamentos e da vacina contra a Covid-19. A pandemia também mostra que as instituições de ensino de referência ainda são as ocidentais, uma vez que a estadunidense Johns Hopkins, por exemplo, é uma das principais fontes de estatísticas sobre o avanço do vírus. Assim, priorizar o investimento em pesquisa e desenvolvimento tecnológico poderia ser uma estratégia importante.

O governo Trump, no entanto, parece priorizar uma outra estratégia, lançando uma cruzada para culpar a China pela pandemia e dando apoio a rumores de que o vírus teria sido criado em laboratório, mesmo enquanto as agências de inteligência apontam que o mesmo surgiu de forma espontânea. Como em outros momentos de sua presidência, Trump fortalece uma campanha de desinformação, dessa vez dirigida especialmente à China, pressionando o país asiático. Ao mesmo tempo, o governo Trump promove uma retórica de confronto em relação à China, não apenas falando na existência de um “vírus chinês”, como buscando que essa retórica fosse incorporada em declarações internacionais. No final das contas, essa postura intransigente impede o consenso necessário a uma decisão coletiva no plano internacional.

Assim, embora as consequências da pandemia ainda sejam difíceis de averiguar do ponto de vista de uma transição de poder, no que concerne às relações entre China e Estados Unidos, a pandemia tem impactado no sentido de aumentar a rivalidade entre as duas grandes potências globais. É esperado que a campanha presidencial estadunidense seja permeada pelo tema das relações com o país asiático, com acusações recíprocas de Biden apresentando Trump como fraco em relação à China e vice-versa, como já anunciado em propaganda divulgada pelo candidato democrata. Trata-se, de uma escalada quando comparado a 2016, quando os republicanos já apresentavam uma retórica de confronto, mas esta não era compartilhada pelos democratas.

Não se trata de uma via de mão única: as agências de inteligência de Washington descobriram, por exemplo, que suas homólogas chinesas estão envolvidas na difusão de fake news sobre o vírus que objetivam aumentar o pânico nos Estados Unidos. Ademais, diplomatas chineses já sugeriram que o coronavírus havia sido, na verdade, uma criação das Forças Armadas estadunidenses. Assim, embora o problema global do coronavírus demande coordenação mundial e articulação das grandes potências, isso parece longe de acontecer, com consequências problemáticas para a estabilidade da ordem internacional. Em síntese, embora os impactos da pandemia para a ascensão chinesa e declínio dos Estados Unidos ainda não estejam totalmente determinados, o aumento da rivalidade entre ambos já se mostra como uma consequência palpável.

 

 

Autora: Lívia Peres Milani, professora substituta no Departamento de Relações Internacionais (UFS), doutora em Relações Internacionais pelo PPG RI “San Tiago Dantas” (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).