História das milícias no Brasil: como surgiram e se expandiram?


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Você com certeza já ouviu falar sobre um tal de “poder paralelo”, não é mesmo? Mas você sabe qual é a verdadeira história das milícias no Brasil e como elas se consolidaram?

As milícias representam um dos fenômenos mais complexos da segurança pública no Brasil, é tema de muitos debates e já foi alvo de investigações, como a CPI das Milícias. Essas organizações armadas, geralmente formadas por agentes de segurança pública ou por seus ex-membros, controlam territórios e oferecem serviços essenciais.

No Brasil, a atuação das milícias é predominante no Rio de Janeiro, mas também pode ser vista em outros estados. Neste conteúdo, vamos explorar como a milícia surgiu, como se expandiu e como se transformou no poder que conhecemos hoje.

Para isso, nossa equipe conversou com o sociólogo Bruno Paes Manso, autor do livro República das Milícias e especialista no tema, para entender as dinâmicas da história das milícias no Brasil.

 

O que são as milícias
A milícia é um grupo armado que opera de forma paralela ou com o consentimento das forças de segurança estatais, muitas vezes composto por agentes ou ex-agentes do Estado, como policiais civis, PMs, bombeiros, guardas municipais e membros das Forças Armadas.

No Brasil, esses grupos atuam à margem da lei e controlando determinados territórios e populações. Eles atuam com atividades ilegais, incluindo a exploração de serviços essenciais, como transporte e acesso à moradia, e a oferta de segurança em troca de pagamento de taxas, por exemplo.

Nas regiões onde atuam, os moradores não têm escolha senão pagar pelos serviços ou enfrentar retaliações.

 

Como surgiu as milícias no Brasil
A origem das milícias no Brasil remonta à década de 1950, período em que a polícia do Rio de Janeiro focava em proteger áreas nobres e centrais, deixando as periferias expostas ao crime e à violência.

Nessa época, surgiram os primeiros “esquadrões da morte”, grupos de extermínio formados por policiais para reprimir o crime nas periferias. A narrativa criada foi de uma oposição entre dois grupos:

- Os traficantes representavam o caos e a insegurança;
- Os milicianos surgiam como uma resposta necessária para neutralizar essa ameaça, usando a violência como um meio de restaurar a ordem, inclusive com o uso de força letal.

Um marco neste contexto foi a criação, em 1957, da Turma Volante Especial de Repressão aos Assaltos à Mão Armada (TVRAMA), pelo general Amaury Kruel, com o objetivo de combater o aumento de roubos.

Além disso, a relação com o jogo do bicho, profundamente enraizado na cultura carioca, também impulsionou a criação de grupos armados para proteger os interesses dos chefes das apostas, os “bicheiros”. A operação do jogo dependia dos “bicheiros”, que além de controlar os pontos de apostas, garantiam a proteção aliando-se aos policiais.


E no mundo?

Assim como no Brasil, outros países também tiveram suas próprias versões de milícias, com características e propósitos distintos. Vamos entender isso melhor.

M-i-l-i-t-i-a. Militia. Significado no Latim Clássico: forças armadas ou simplesmente exército. No português, milícias.

Essa palavra originalmente surgiu da Roma Antiga, onde carregava um significado diferente e até mais simples do que vemos hoje. Por lá, ser miliciano, ou seja, ser da “militia” era simplesmente ser um militar.

Já na Rússia, as “milítsas soviéticas” surgiram após a Revolução de 1917 para substituir a polícia czarista. Posteriormente, a milícia assumiu o papel de controlar protestos e manifestações durante o período da Perestroika, nos anos 1980.

Na Alemanha nazista de Hitler, a milícia tinha um papel bem próximo do que conhecemos hoje. As Tropas de Choque do Partido Nazista (Sturmabteilung, ou SA) representaram uma forma de milícia paramilitar, intimidando opositores e promovendo a ideologia nazista.

Nos Estados Unidos, as milícias surgiram no período colonial, quando os primeiros imigrantes foram grupos para se proteger na ausência de forças policiais ou militares. Com o tempo, essas milícias dos EUA evoluíram e hoje incluem uma variedade de ideologias, muitas vezes com tendências extremistas. Esse é o caso de grupos como os Oath Keepers (OUAT KIPERS), Three Percenters e Posse Comitatus.


Histórico de atuação da milícia: dos anos 1950 até os dias atuais

Em 1957, surgiu o primeiro grupo de extermínio do Rio de Janeiro, criado pelo general Amaury Kruel, a “Turma Volante Especial de Repressão aos Assaltos à Mão Armada”, conhecida como TVRAMA. O objetivo era combater o aumento dos roubos na cidade.

Já durante a ditadura militar (1964-1985), grupos de extermínio e esquadrões da morte praticavam a repressão e a eliminação de opositores do regime. Segundo Bruno Paes Manso:

“Os esquadrões da morte passam a atuar usando a violência como se matando bandido. Naquela época, visto como ameaças, diferente do bandido da contravenção, que era o malandro e tudo mais. Esses bandidos vistos como pessoas perigosas, onde se matar se exterminava. Era uma forma, de acordo com a concepção da época, de tornar a cidade mais segura. Então inicia se uma ideia de guerra ao crime, guerra às favelas, como se usando a violência, você ensinasse que existia lei nas cidades e como se fosse um tipo de violência pedagógica para ensinar as pessoas a respeitarem as leis”

A ideia de “matar bandidos” como um lema de segurança pública se espalhou ainda mais para outros estados, dando origem a cada vez mais grupos de extermínio em uma estrutura de crime organizado.

Foi a partir dos anos 2000 que surgiu a milícia com a atuação que conhecemos hoje. Policiais e ex-policiais corruptos, além de oferecerem segurança nas comunidades sob o pretexto de resguardar os moradores do tráfico, intensificaram suas atividades.

Bruno Paes Manso diz que:

“As milícias, elas vão exercer um modelo de negócio e depende do controle territorial. Então ela surge depois de 20 anos de tráfico de drogas no Rio, e elas se vendem como uma espécie de autodefesa comunitária.”

E complementa:

”E os milicianos, em vez de vender drogas, passam a controlar uma diversidade de mercados e vão desde as vans clandestinas até a venda de cigarros piratas, e de apartamentos construídos por eles mesmos.”

Dessa forma, os milicianos estabeleceram um monopólio sobre o fornecimento de bens e serviços em regiões sob seu domínio. Com uma estrutura bem organizada, eles controlavam desde itens essenciais, como cestas básicas, até a distribuição de energia elétrica e gás de cozinha.

Quem vivia nas áreas comandadas pela milícia não tinha escolha: ou pagava as taxas impostas, ou enfrentava as consequências, que iam de ameaças a retaliações violentas.

No entanto, algumas comunidades sob o controle das milícias relatavam sentir-se mais seguras em comparação ao período anterior, quando o tráfico de drogas dominava as favelas. Para muitos moradores, a presença das milícias, embora coercitiva, representava uma forma de proteção contra o ambiente hostil gerado pelo tráfico, com a redução de tiroteios e uma percepção de maior ordem nas ruas.

Além dos produtos básicos, os milicianos expandiram sua rede de controle para serviços de entretenimento. A distribuição de internet e TV a cabo também era controlada por eles, e, além disso, chegavam a comercializar até mesmo kits de churrasco. Nesse cenário, necessidades cotidianas se transformavam em fonte de lucro e coerção.

Com o tempo, as milícias passaram a se envolver em um novo tipo de crime: o tráfico de drogas, se transformando em “narcomilícias”.

Os membros das milícias assumiram o controle do tráfico nas áreas que dominam, expulsando os traficantes que antes operavam nesses locais, ou fazendo parcerias com facções para explorar o mercado de drogas. Relatórios do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro mostram que algumas milícias alugam territórios para traficantes e até criam franquias de pontos de venda de drogas.

Além disso, as milícias começaram a conseguir cada vez mais apoio político para eleger seus próprios representantes, o que intensificou ainda mais seu poder e influência.

O que dizem os especialistas

De acordo com especialistas, incluindo o nosso entrevistado, o crescimento das milícias pode ser visto como um sintoma da ausência do Estado na prestação de serviços básicos e de segurança nas periferias.

Sem a presença efetiva do poder público, algumas comunidades viram as milícias como uma forma alternativa de organização que oferece segurança, transporte e energia, mesmo que de forma coercitiva e a preços abusivos.

Por isso, muitas vezes, a atuação das milícias era bem recebida por uma parte da população que estava aterrorizada pela criminalidade crescente e desejava qualquer forma de estabilidade, mesmo que isso significasse apoiar métodos brutais.

Milícias no Rio de Janeiro

As milícias se desenvolveram com mais influência no Rio de Janeiro. Ali, o avanço desses grupos moldou uma nova geografia do crime organizado, com dois principais núcleos de atuação territorial:

Além do controle territorial, as milícias são organizadas em facções, semelhantes ao modelo utilizado pelo tráfico de drogas. Dentre as facções milicianas mais conhecidas, estão a Liga da Justiça e Escritório do Crime.

A Liga da Justiça é uma das maiores organizações de milícias no estado, com atuação em diversos bairros da Zona Oeste e fama por seu controle rigoroso sobre os serviços dos moradores locais. Essa facção cobra as chamadas taxas de segurança, explorando serviços como o fornecimento de gás e transporte clandestino.

Já o Escritório do Crime é notório por sua ligação com assassinatos de aluguel e sua estrutura de atuação paramilitar, sendo apontado em investigações como um dos principais responsáveis por execuções encomendadas e pelo controle da segurança ilegal.

O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) e o Instituto Fogo Cruzado registram que as milícias expandiram significativamente sua influência desde os anos 2000, dominando bairros inteiros e oferecendo os chamados serviços alternativos aos cidadãos nas áreas onde o Estado está ausente.

Essa presença acentuada das facções milicianas no Rio de Janeiro mostra como essas organizações transformaram a dinâmica de segurança e controle social, se consolidando como uma força paralela ao poder público em diversas regiões.

Mapa dos grupos armados no Brasil

Segundo o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, mais de 4,4 milhões de pessoas moram em áreas controladas por grupos criminosos (milícia e tráfico) no Grande Rio.

Em 2023, as milícias controlavam cerca de 38,9% dos 466,65 km² dominados por grupos criminosos na Região Metropolitana do Rio. A expansão dos territórios milicianos avançaram, sobretudo, em áreas que não eram dominadas por nenhum grupo anteriormente.

Ainda segundo o Instituto Fogo Cruzado e a UFF, entre 2006 e 2021, o território controlado pelas milícias no Grande Rio aumentou de 52,6km² para 256,3 km². Isso representa um crescimento de 387% e mostra que a milícia ocupa quase toda a zona oeste da cidade do Rio.

Em 2006, os jornais “O Globo” e “Extra” destacaram que a cada 12 dias, uma favela dominada pelo tráfico era tomada por milícias. Os relatórios indicavam que essas ocupações eram organizadas por policiais, políticos e líderes comunitários. Naquela época, o número de comunidades controladas por milícias subiu de 42 para 92 em 20 meses.

Toda essa expansão tem gerado conflitos e aumento significativo da violência. De janeiro a outubro de 2023, a zona oeste do Rio viveu um aumento de 129% nos homicídios e 291% nas chacinas em comparação com o ano anterior.

Em alguns momentos da política brasileira, as milícias estiveram no alvo do poder público. Uma delas foi em 2008, quando deputados estaduais iniciaram a CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, liderada pelo então deputado Marcelo Freixo. Essa CPI trouxe à tona conexões entre milicianos e políticos.

O resultado foi que mais de 200 pessoas foram indiciadas, incluindo parlamentares, policiais e bombeiros.

Em 2012, foi criada a Lei nº 12.720, um marco no Código Penal, em que o país reconhece formalmente o crime de milícia privada, além de outros tipos de organizações criminosas.

Outro momento foi após o assassinato de Marielle Franco, ex-vereadora do PSOL, quando milicianos foram apontados como responsáveis pelo mandado e pela execução de seu assassinato.

Para muitos, essa proximidade sugere uma dependência entre poder público e milicianos, que garantem segurança e votos em troca de controle sobre as comunidades. O professor Wellington Caixeta Maciel, por exemplo, destaca que “as milícias foram ganhando muito respaldo político. A ponto de vermos deputados eleitos que contratam milicianos e familiares de milicianos”.

Esse laço permite às milícias perpetuar seu domínio, agora também político, aumentando sua influência em processos eleitorais e políticas de segurança pública. O caso de Jerônimo Guimarães Filho, o “Jerominho”, ex-vereador e líder da Liga da Justiça, é um caso emblemático dessa simbiose entre milícias e política.

Nesse sentido, surgem algumas reflexões sobre até que ponto as milícias são apoiadas politicamente, e por isso, permanecem livres de investigações mais consistentes que possam controlar essa questão tão complexa no Brasil.

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