Um paradoxo ronda nosso tempo. Com o nível do desenvolvimento tecnológico em que nos encontramos hoje, nunca tivemos tanta informação, comunicação e entretenimento disponíveis e acessíveis para a maior parte de nós. No entanto, tais possibilidades capturam intensamente nossa atenção, além de impactar nossas percepções, experiências e expectativas. Dessa maneira, questionar onde estamos, como coloca o título deste ensaio, é uma pergunta que remete a atençãopara a nossa própria atenção. Posso acompanhar nas redes sociais as últimas notícias da retirada dos soldados americanos do Afeganistão ou a opinião de uma famosa atriz de televisão sobre o tema; posso conversar com um amigo baiano no aplicativo de mensagens sobre as últimas novidades do mercado editorial ou posso assistir ao último vídeo da manifestação política, concordando ou discordando do posicionamento dos manifestantes. Uma constante nesses casos é o fato de que, de algum modo,não estou aqui: minha atenção está direcionada para o Afeganistão, para outras opiniões, para o mercado editorial ou para as tensões políticas do nosso tempo. A busca por capturar e manter a minha atenção é decisiva para as plataformas que utilizo, e boa parte de sua estrutura envolve tal intenção.
O traço paradoxal dessa situação envolve a liberdade da atenção: esperamos que as tecnologias contribuíssem de alguma forma para a nossa emancipação nos mais variados aspectos; porém, nota-se o contrário: nossa autonomia, liberdade e atenção são cada vez mais impactadas pela constante conexão e distrações possíveis. É dessa tensão e seus desafios que o filósofo e programador James Williams trata em “Stand Out of Our Light: Freedom and Resistance in the Attention Economy”, livro publicado em 2018 nos Estados Unidos. Williams não faz exatamente um guia para lidarmos com o paradoxo que citamos, mas promove uma apresentação importante do problema e uma descrição reflexiva do atual estado da discussão. O autor trabalhou como estrategista do Google e, motivado pelas questões surgidas dessa atuação, optou por estudar filosofia em Oxford, na Inglaterra. A situação chamou a atenção de sua mãe: “por que alguém escolheria um lugar tãovelho para estudar algo tãonovo?”
O questionamento é interessante e faz pensar em como as inovações tecnológicas impactam tanto nosso modo de vida sem que pensássemos muito sobre o cenário. Mobilizar a velha filosofia para esse fim produziu respostas interessantes. Segundo o diagnóstico de Williams, “alguma coisa profunda e potencialmente irreversível parece estar acontecendo com a atenção humana na era da informação”. Sua tentativa de lidar com essa questão envolve desafios sociais e políticos. Williams venceu o Prêmio Nine Dots de 2016, que propunha a seguinte questão: “as tecnologias digitais estão tornando a política impossível?” A resposta de Williams deu origem ao livro, que trata também de outros temas da infoética, como a intensão das corporações no design das tecnologias, a responsabilidade sobre os efeitos da disseminação de informações falsas e do controle da atenção, entre outros. As análises e respostas de Williams chegam ao Brasil num momento oportuno, no qual as tecnologias de informação e comunicação impactam decisivamente a vida social e política do país. A apresentação e a reflexão sobre os problemas éticos da tecnologia de captura da atenção são de extrema importância nesse contexto.
Williams aborda inicialmente o episódio do século 4 a.C. no qual o filósofo cínico Diógenes de Sinope pede tranquilamente para Alexandre, o Grande, que “saia da frente da luz”. O pedido é curioso, pois Alexandre, o homem mais poderoso do mundo de então, se propõe a atender qualquer pedido do filósofo. A passagem –trollagem de Diógenes, conforme a descrição – dá o título ao livro e faz referência ao desafio imposto pelas tecnologias na vida contemporânea, principalmente quando pensamos em nossa atenção. Desenhadas com o objetivo de impactar e controlar o nosso foco, tais tecnologias podem trair nossa confiança, uma vez que esperamos que o desenvolvimento tecnológico contribua para o nosso desenvolvimento enquanto humanos. No entanto, as tecnologias de captura da atenção oferecem constantemente possibilidades de interação, comunicação, entretenimento, entre outras, que podem acabar contribuindo para a degradação das nossas potencialidades e foco. No caso, o sucesso de tais tecnologias, com milhões e milhões de usuários interagindo e compartilhando suas vidas, mostra o quanto “a luz da nossa atenção” já está comprometida.
Williams mostra também como a nossa tendência para a distração é uma aliada das tecnologias persuasivas, que buscam o engajamento constante dos usuários. A atração promovida pelas plataformas digitais explora essa tendência e cria meios bem eficazes para o direcionamento de nossa atenção. Torna-se uma espécie de “GPS com defeito”. Impactados a todo momento por uma série de estímulos e dados, principalmente depois do desenvolvimento dos dispositivos e da conexão, nossa atenção passa a ser o alvo para a indústria tecnológica. Nesse sentido, tais tecnologias impõem desafios ao nosso autocontrole, mobilizando traços da nossa natureza e psicologia, inclusive no design das plataformas e meios de interação. Por fim, as tecnologias persuasivas operam considerando como as programações buscam monitorar e oferecer aos usuários meios para que permaneçam em constante engajamento nas redes e aplicativos, configurando assim uma “economia da atenção”. Segundo o autor: “e assim chegamos ao século 21: com persuasão sofisticada aliada à tecnologia sofisticada de modo a tornar prioridade em nossas vidas os mais mesquinhos objetivos”.
Um desafio aqui é identificar o problema, que envolve um traço complexo e decisivo da nossa humanidade: a atenção, “o conjunto completo dos recursos de navegação por todos os níveis da vida humana”. Williams distingue três níveis da nossa atenção: (i) ofacho de luz, que envolve “as capacidades imediatas a nos conduzir em consciência e ação nas nossas atividades; (ii)o farol de luz, que envolve “as capacidades mais amplas de navegação da vida”, construindo e considerando os “objetivos e valores mais elevados”; e (iii) aluz do dia, as “nossas capacidades fundamentais que nos permitem definir nossos objetivos e valores”. De acordo com Williams, o ofuscamento dessas luzes produz diferentes tipos de distração. No primeiro caso, o ofuscamento do facho de luz produz distrações funcionais no cotidiano, nos desviando de informações ou ações relevantes para a vida. As tecnologias persuasivas promovem esse ofuscamento na medida em que, por exemplo, nos expõem a notificações e expectativas constantemente, com a contribuição da arquitetura das plataformas. No segundo caso, o ofuscamento do farol de luz representa uma camada mais profunda das distrações, que envolve nossas identidades, subjetividades e valores. Conforme a análise de Williams, podemos nos tornar “mais mesquinhos” na medida em que nossa atenção é capturada e direcionada para objetivos que nos afastam dos nossos valores. Uma cultura de futilidade e frivolidade, pautada por “ver e ser visto”, impacta inclusive a política e o convívio democrático, ampliando as distâncias e diminuindo os diálogos fundamentais para a vida em conjunto. Por fim, o ofuscamento da luz do dia promove a “distração epistémica”, isto é, a redução das capacidades de estabelecer e buscar objetivos – como a reflexão, a memória, o raciocínio e o lazer.
Tudo considerado, torna-se necessário defender o que Williams chama de “liberdade de atenção”. Primeiramente, mostra como as tecnologias persuasivas impactam nossa vontade, elemento fundamental para a autonomia e a soberania política. A possibilidade de um “manejo da vontade” é um grande desafio político de nosso tempo, pois vivenciamos cada vez mais situações de crise política e social que envolvem as interações sociais digitais. Aqui, o “campo de batalha primordial” é a nossa própria atenção e considerar essa questão muitas vezes esquecida é a resposta inicial aos desafios da economia da atenção. Também esclarece que sua posição não é contrária ao desenvolvimento tecnológico e empresarial, mas sim favorável ao desenvolvimento de um cuidado com nossa atenção e nossa sociedade, principalmente quando se considera o potencial da tecnologia persuasiva. Sugere a necessidade de preparação e responsabilização dos múltiplos agentes envolvidos no contexto da economia da atenção – líderes, programadores, usuários e a sociedade como um todo. A ética do cuidado que propõe, influenciado pela posição do filósofo Charles Taylor, pressupõe a observação e a regulação constante das corporações, inclusive pelos próprios conglomerados tecnológicos. Por fim, reafirma as expectativas positivas acerca do potencial tecnológico, “que, no seu melhor, abre nossas portas da percepção, inspira admiração e espanto, além de criar empatia entre nós.” No entanto, ao manter objetivos de persuasão e engajamento a qualquer custo, tais tecnologias mobilizam nossa atenção de modos que fogem ao nosso controle e podem contribuir para a degradação humana.
Williams apresenta bem as tensões éticas e políticas da vida sob a economia da atenção, inclusive com detalhes da tecnologia persuasiva que atravessa nossos cotidianos. A discussão sobre as dinâmicas de persuasão da atenção é talvez o debate mais necessário do nosso tempo, uma vez que envolve questões ligadas à política, à educação, à economia e à saúde, entre outros campos fundamentais das sociedades contemporâneas. A discussão sobre as consequências da economia da atenção nos ajuda a compreender alguns desafios contemporâneos, como o crescimento do extremismo político, o negacionismo científico e a desordem informacional. Algumas de suas respostas envolvem um otimismo questionável, principalmente quando se pensa no papel das corporações tecnológicas como agentes fundamentais para a ampliação da liberdade de atenção na atualidade. O fato de que o autor tenha atuado no Google antes pode ter contribuído para essa expectativa, porém, conforme tem sido observado nos últimos tempos, a preocupação com a liberdade de atenção do usuário não é o foco principal das grandes plataformas, que precisam, definitivamente, ser mais cuidadosas com “a nossa luz”.
Autor: José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais do Instituto Federal de Minas Gerais – Campus Ponte Nova. É doutor em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Fonte: Nexo