Mitidieri entra na história por privatizar a água e vender a Deso, patrimônio público de Sergipe

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O 4 de setembro de 2024 entrou para a história de Sergipe como o dia em que o governador Fábio Mitidieri (PSD) e seus aliados sacramentaram, numa bolsa de valores em São Paulo, a privatização da água a partir da venda da Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso), um patrimônio público histórico e valioso do povo sergipano.

Mesmo com a privatização repleta de indícios de irregularidades e com ações ainda tramitando, a Deso foi entregue para a empresa privada Iguá Saneamento por R$ 4,5 bilhões. O negócio teve ágio de 122% porque o valor de venda estipulado pelo governo era de R$ 2 bilhões. Esse montante a mais indica que a Deso é muito lucrativa e valia bem mais que a estimativa oficial.

Participaram do ato festivo da privatização da água e da venda da Deso em São Paulo vários secretários de estado; o prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira (PDT); os senadores Laércio Oliveira (PP) e Alessandro Vieira (MDB); deputados estaduais, entre eles o presidente da Assembleia Legislativa, Jeferson Andrade (PSD).

Apesar da privatização, o governo continua responsável pelos serviços de captação, transporte e tratamento de água, atividades que apresentam os custos mais elevados e não administráveis, como energia elétrica e produtos químicos, e riscos não gerenciáveis, a exemplo de hidrológicos e climáticos. A Iguá Saneamento ficará somente com a parte lucrativa, isto é, distribuição, esgoto e faturamento.

“Na verdade, a empresa privada será uma espécie de mera atravessadora varejista, pegando água tratada e barata para revender – com aumento tarifário – aos consumidores sergipanos, lucrando muito com isso”, afirma Sílvio Sá, presidente do sindicato dos trabalhadores em saneamento básico do estado de Sergipe (Sindisan).

“Hoje é um dia nefasto para os trabalhadores e trabalhadoras em saneamento de Sergipe e, também, para a população sergipana, especialmente para a parcela mais carente e vulnerável socialmente, a parte que será mais afetada com esse entreguismo deliberado do atual governo”, diz a nota divulgada ontem pelo Sindisan.


De onde vem a Iguá Saneamento?
A empresa Iguá Saneamento é controlada pelo capital internacional, majoritariamente do Canadá. Com o martelo batido ontem, os donos da Deso deixam de ser o povo de Sergipe e passam a ser fundos de investimento em participações (FIPs), sendo o principal deles o FIP Mayim e que reúne recursos da AIMCo (Alberta Investment Management Corporation), uma gestora de investimentos do Canadá.

Ainda são donos da Deso os fundos FIP Iguá e o CPP Investments, também do Canadá. Vale registrar, porém, que o CPP Investments gerencia tanto o FIP Mayim quanto o FIP Iguá, ou seja, eles detém sozinhos 91,4% da Iguá Saneamento. Os 8,6% restantes estão nas mãos do BNDESPar, empresa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que é uma estatal e compra ações em empresas de acordo com os interesses do governo brasileiro.

No dia 27 de maio deste ano, a Mangue Jornalismo publicou uma reportagem exclusiva revelando que o edital da venda da Deso tinha partes copiadas da privatização realizada no Rio de Janeiro. Ontem, a Iguá Saneamento, que comprou a Deso, já tinha vencido um leilão exatamente para parte de municípios do Rio de Janeiro. Na reportagem, especialistas apontam graves erros no edital da Deso.

No Brasil, a Iguá Saneamento atua em seis estados (São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso e Alagoas), tem 2,5 mil trabalhadores e atende a 3 milhões de pessoas. Esses dados são oficiais da empresa.

Segundo as pesquisadoras Ana Britto e Isadora Cruxên, do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), apenas cinco empresas privadas (BRK, Aegea, Iguá Saneamento, Águas do Brasil e GS Inima) dominam quase 60% dos contratos no setor de saneamento básico no país. Somente as três primeiras abarcam quase 48% desse total. Em breve, quase toda água potável no país será privada e com controle internacional.

Composição acionária da iguá saneamento (site da empresa)
Sobre a Iguá Saneamento, o Reclame Aqui, organização mais referenciada no Brasil de reclamações sobre produtos e prestação de serviço, mostra que essa empresa não tem boa reputação. “O consumidor avaliou o atendimento dessa empresa como Não Recomendada. A nota média nos últimos 6 meses é 4.7”. Nos últimos seis meses do Reclame Aqui foram “registradas 135 reclamações avaliadas e a nota média dos consumidores é 2.76.”

Somente nos últimos dias, clientes da Iguá Saneamento postaram no Reclame Aqui alguns protestos pelos serviços da empresa, como: “cobrança de esgoto que não existe”; “corte indevido de fornecimento de água”; “cobrança abusiva da taxa água”; “ninguém vem consertar o estrago na calçada”; “cobrança a maior, provavelmente de ar”; “fala de água”, entre outras reclamações.

Para o governador de Sergipe, a venda de parte do patrimônio público da Deso, que ele chama de concessão, inaugura “um novo ciclo na política de desenvolvimento do nosso estado, uma virada de página na questão do saneamento público do nosso estado. O que estamos fazendo é mais do que fazer história: é dar dignidade ao povo”, afirmou Mitidieri no site do governo.

A entrega da Deso para fundos de investimentos estrangeiros rompe uma história de 61 anos, quando o então governador João de Seixas Dória (PR) criou, por meio da Lei nº 1.195, de 13/08/1963, o Departamento de Saneamento de Sergipe (Deso), que logo depois se transformaria em companhia, mas mantendo a sigla. Esse patrimônio público do povo sergipano tinha a missão de levar água potável para a população e cuidar do saneamento.

 

Uma luta heroica e solidária do Sindisan
Em Sergipe, órgãos públicos de controle, como Tribunal de Contas e Ministério Público, e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Sergipe que, por força de lei, deveriam acompanhar o processo de privatização da água e a venda da Deso quase não se envolveram, deixando praticamente sozinho o sindicato dos trabalhadores da Companhia de Saneamento de Sergipe.

O Sindisan denuncia que o governo do estado, “diante da sua incompetência administrativa, em lugar de trabalhar para melhorar a oferta e os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, estratégicos para o desenvolvimento do Estado, preferiu o caminho mais fácil da privatização, de olho apenas nas gordas cifras da outorga que entrarão nos cofres do governo e das prefeituras, para gasto ao bel prazer dos mandatários de plantão, numa grande farra que está por vir”.

Os dirigentes do sindicato dizem que estão conscientes do dever cumprido, que debateram exaustivamente o tema nos mais variados espaços da sociedade sergipana, alertando a população e a classe política sobre os resultados desastrosos das cidades e estados do país onde a privatização do saneamento básico chegou. “Lutamos até o fim para evitar que a sanha do capital privado prevalecesse sobre o interesse coletivo”.

Para o Sindisan, a venda da Deso na bolsa de valores não é o fim, mas o começo de novas lutas. “Enfrentaremos esse processo de privatização fraudulento, não só pelos atropelos à legislação e à autonomia dos municípios, bem como pela falta de debate público e erros grotescos nos estudos que fundamentaram o edital do leilão. Tudo isso foi exaustivamente denunciado ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal de Justiça de Sergipe, ao Tribunal de Contas do Estado, e ao Ministério Público Federal e de Sergipe, porém, sem resposta positiva desses órgãos em tempo hábil”.

Os problemas com a privatização da água e venda da Deso são inúmeros, começando por Aracaju. A capital ainda tem uma Lei Orgânica que proíbe, de forma expressa, que o serviço de saneamento da cidade seja privado.

Aracaju representa 40% de toda a arrecadação da Deso. “A capital já universalizou o abastecimento de água e cobre 60% da coleta e tratamento dos esgotos. Com as obras que estão em andamento, em dois anos atingirá 80%; em mais três anos chegará a 95%, atingindo as metas do marco regulatório”, informa Silvio Sá.

Para fugir do impedimento da Lei Orgânica do Município de Aracaju, o governador aprovou na Assembleia Legislativa, na madrugada de um sábado e com o prédio cercado de policiais militares, uma lei que transformou todo o estado de Sergipe em única microrregião. Entretanto, para que essa mudança se concretizasse era preciso realizar audiências públicas, mas elas também não ocorreram conforme à lei.

 


Deso é uma empresa pública essencial e lucrativa
Nos últimos meses, a Mangue Jornalismo publicou 14 reportagens sobre o processo de privatização da água e a venda da Deso. Além disso, produziu o e-book “Água, um direito humano essencial não pode ser privatizado”, publicação com download gratuito e que foi apoiada por muitas leitoras e leitores.

Por meio da Mangue, soube-se que a Deso fornece mais de 128 bilhões de litros/ano de água potável para quase 2 milhões de sergipanos. Em 2022, a empresa fechou seu balanço com um superávit superior aos R$ 40 milhões. A companhia tem 1.550 trabalhadores efetivos e outros 1.300 terceirizados que executam diariamente todas as atividades da área do saneamento.

Muito diferente das empresas privadas, a Deso, por ser pública, tem compromisso social, o que faz com que leve água potável e saneamento básico aos pequenos povoados e periferias das cidades. Hoje, 99% das sedes dos 74 municípios sergipanos atendidos pela Deso já têm acesso à água tratada.

As empresas privadas não têm interesse nos pequenos e distantes municípios e povoados porque eles não dariam lucro. “Isso já acontece onde a privatização do saneamento chegou. Nos contratos do Governo de Alagoas com as empresas BRK Ambiental, Águas do Sertão e Verde Ambiental, está estabelecido que elas só atenderão comunidades com mais de 800 residências”, informa Sílvio Sá.

Além de ser lucrativa, a atividade da Deso é essencial em razão da água ser um direito humano. Faz mais de 14 anos que a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução (nº 64/A, de 28/07/2010) nítida que, em resumo, diz: o acesso à água limpa e segura e o saneamento básico são direitos humanos fundamentais, essenciais para se gozar plenamente da vida e de todos os demais direitos.

As Nações Unidas também inseriram o fornecimento de água e saneamento para todos como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. “Defendemos que alimentação e água potável são direitos fundamentais e inegociáveis, principalmente a água, pois sem ela não há como sequer produzir alimentos. Água é vida e não pode ser tratada como mercadoria”, enfatizou Aécio Ferreira, secretário-geral do Sindisan.

Léo Heller, que foi relator especial da ONU sobre água e saneamento, é categórico ao afirmar que a privatização desses serviços já se mostrou inadequada em diversos países. “A empresa privada não investe o suficiente e adota política de exclusão de populações mais pobres, impondo tarifas mais altas”, disse Heller. Ele lembrou que o próprio Banco Mundial, antes defensor das

 

Contas de água e esgoto aumentaram onde o serviço foi privatizado
Para os especialistas consultados pela Mangue Jornalismo, a privatização da Deso vai significar um grande aumento nas contas de água e esgoto pagas pela população. O alerta se sustenta em dados e na realidade de outras cidades onde esse serviço público essencial foi entregue para empresas privadas.

Um dos casos próximos é o da venda da Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal). A então empresa pública foi privatizada em três blocos e um deles foi vencido exatamente pela Iguá Saneamento.

As consequências da privatização em Alagoas foram mais perversas para a população pobre. Depois de vendida, as tarifas de água e esgoto aumentaram consideravelmente e os serviços prestados pelas empresas privadas que assumiram as concessões não melhoraram em nada a vida dos usuários alagoanos.

Veja a comparação: hoje, a Deso cobra R$ 75,33 por cada 10m³ (metros cúbicos) de água, incluída aí a taxa de 80% de esgoto. Na Região Metropolitana de Maceió, onde o serviço foi privatizado, a tarifa atual da empresa privada BRK Ambiental é de R$ 126,00 para os mesmos 10m³ e a taxa de esgoto pulou para 100%.

Não foi só em Alagoas que a privatização da água gerou rapidamente o aumento nos valores das tarifas. No estado do Tocantins, o governo também entregou em 1998 o saneamento para empresas privadas. Em 2010, esse modelo fracassou e a empresa privada devolveu ao Estado 78 municípios que não davam lucro, obrigando o governo a criar uma autarquia pública novamente, a Agência Tocantinense de Saneamento (ATS), para reassumir os serviços de saneamento desses municípios deficitários, com enormes custos para a população daquele estado.

As tarifas também aumentaram muito depois da privatização da água nas cidades de Manaus/AM, Rio de Janeiro/RJ, Ouro Preto/MG e Itu/SP. Em Ouro Preto, por exemplo, a água e o esgotamento sanitário foram entregues à empresa do poderoso grupo sul-coreano GS Engineering & Construction em 2019. Logo depois, a população passou a travar uma verdadeira “guerra” pelos péssimos serviços que vem prestando.

O governador de Sergipe disse ontem em São Paulo que na operação vendendo parte da Deso está mantida a tarifa social, programa que oferece desconto de até 50% na fatura de água para a população de baixa renda. Garantiu também que nos três primeiros anos de atuação, a concessionária não poderá fazer reajuste tarifário acima da inflação. Ou seja, só terá aumento depois das eleições estaduais do ano de 2026.

“Temos um povo para tomar conta, para proporcionar mais saúde por meio do saneamento e da dignidade de ter água na porta. Vamos encerrar aquela página triste de ter caixa d’água na porta de casa no interior do estado. Vamos inaugurar um novo tempo e fazer história juntos, e que venha um futuro abençoado para o nosso povo”, disse Fábio Mitidieri.

 

Autor: Cristian Góes
Fonte Mangue Jornalismo

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