Texto da venda da Deso tem partes copiadas da privatização no Rio de Janeiro

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Treze dos maiores especialistas em água e saneamento do Brasil assinaram uma Carta Pública alertando ao governador Fábio Mitidieri (PSD) e aos órgãos de controle sobre os graves erros e omissões dos documentos que preparam a privatização da Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso). Em alguns trechos existem partes copiadas da privatização no Rio de Janeiro.

Os especialistas se debruçaram sobre uma Nota Técnica assinada pelo engenheiro Adauto Santos do Espírito Santo e revisada pelo engenheiro Marcos Helano Fernandes Montenegro, um dos coordenadores do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).

Tanto a Nota Técnica quanto a Carta Pública apontam graves falhas que comprometem o Plano Microrregional de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário de Sergipe, documento que fundamenta a entrega do serviço público essencial de água e esgoto para uma empresa privada. Ao final da reportagem, veja os nomes dos 13 pesquisadores.

Leia a Nota Técnica AQUI e a Carta Pública AQUI

Plano de privatização da Deso apresenta graves erros, dizem especialistas (Foto Sindisan)
O documento indica que uma das consequências mais nítidas dos graves erros e omissões do procedimento da privatização da Deso que tem sido adotado pelo governador e prefeitos será o aumento das tarifas dos serviços de água e esgotamento sanitário. Segundo os especialistas, as falhas podem ser propositais para justificar, com o decorrer da privatização, “ajustes” do contrato e a imposição de “reajustes” tarifários.

Faz quase um ano que a Mangue Jornalismo vem acompanhando a tentativa do governador Fábio Mitidieri em privatização da água e do saneamento básico. No dia 22 de março, Dia Mundial da Água, a Mangue produziu e divulgou um ebook sobre a condição essencial da água para a vida na Terra e a luta em Sergipe contra a privatização da Deso. Acesse gratuitamente o ebook AQUI.

Diante da gravidade dos dados anteriores, da Nota Técnica, da Carta Pública e a provocação do Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento Básico do Estado de Sergipe (Sindisan), conselheiros da Ordem dos Advogados do Brasil, em Sergipe (OAB/SE) aprovaram o ingresso da entidade como parte de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).

O Tribunal de Contas do Estado de Sergipe (TCE-SE), depois da ida dos sindicalistas e da apresentação dos estudos, também prometeu acompanhar de perto a privatização da Deso. Existe resolução no órgão que obriga ao Governo do Estado apresentar ao tribunal, 30 dias antes do lançamento público do edital da venda da companhia, os documentos para serem analisados.

“Estamos alertando desde o começo desse processo que se essa privatização se confirmar, vamos ter aumento substancial das tarifas de água, esgoto e de serviços. Agora, os profundos estudos dos maiores especialistas no Brasil nessa área comprovam isso”, afirma Sílvio Sá, presidente do Sindisan.

Para o engenheiro Marcos Montenegro, do Ondas, “a sociedade sergipana precisa abrir os olhos, fugir do negacionismo e acreditar no que a ciência e os especialistas dizem. O processo que prevê a privatização da Deso está repleto de graves erros e omissões”.

Uma ofensa ao povo de Sergipe

Marcos Montenegro chama a atenção para a seriedade da Carta Pública assinada por 13 grandes especialistas no assunto. “O plano apresentado pelo Governo de Sergipe não atende ao que exige minimamente a Lei Nacional do Saneamento Básico, e quem diz isso não sou eu, mas 13 professores doutores titulares em engenharia ambiental de várias universidades, inclusive da UFS”, disse Montenegro.

“Importante esclarecer que o grupo de professores e pesquisadores não se manifestou contra ou a favor da venda da Deso, mas está se expressando tecnicamente e apontando que o modelo de privatização adotado pelo governador e prefeitos é uma ofensa ao povo de Sergipe”, afirmou o engenheiro.

Os professores recomendaram que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Governo de Sergipe façam a revisão integral do Plano, com participação do Comitê Técnico da Microrregião de Saneamento Básico Microrregião de Água e Esgoto de Sergipe (MAES), que ainda não foi instalado, e dialogue com os municípios e a sociedade.

“O plano tem falhas metodológicas sérias; apresentação de dados econômicos sem citação de fontes ou datas precisas; projeções imprecisas, como a curva de crescimento populacional, em que erram feio; e o plano cita outros documentos também com defasagem nos dados”, apontou o professor José Jailton Marques, titular do Departamento de Engenharia e Ciências Ambientais da UFS.

“Faço um apelo para que aqui em Sergipe não tenhamos um negacionismo que possa chegar ao ponto de desprezar o que 13 doutores estão falando a respeito de uma questão que é essencial para o futuro da vida dos sergipanos e do meio ambiente”, reforçou Montenegro.

 

Alguns graves erros e aumento da tarifa

 

A Nota Técnica revela que o documento que está fundamentando a privatização da água em Sergipe tem mais de 6 mil páginas, foi aprovado em minutos pelo governador e pelos prefeitos e “não contém informações relativas aos responsáveis pela sua elaboração, nem a data em que foi concluído”.

Em alguns trechos do documento aparece a citação de “municípios do Estado do Rio de Janeiro” como se fossem de Sergipe (recortou e colou sem fazer a atualização) e a informação da existência de 360 mil km de tubulação e recalque no estado, uma quilometragem tão absurda que equivalente a nove vezes a circunferência do planeta.

Soube-se, em razão de um anexo, que o documento que está sustentando a venda da Deso foi elaborado por consórcio contratado pelo BNDES e foi assinado em junho de 2022, o que ignora completamente os resultados preliminares do Censo demográfico do IBGE, divulgado em junho de 2023. Ou seja, está defasado e produzindo erros.

“As projeções populacionais do plano estão erradas e há projeções de consumo de água e de geração de esgotos que não têm a menor chance de se realizar, o que levará a empresa concessionária privada a solicitar revisão da tarifa para mais, a fim de garantir o seu retorno financeiro”, alertou professor Jailton Marques.

Montenegro também apontou, entre outros problemas, subestimação no Plano em relação aos custos operacionais e com despesas de investimentos, o que fatalmente levará a futuros pedidos de elevação das tarifas pela concessionária privada e de sucateamento progressivo dos ativos vinculados à prestação dos serviços durante os próximos 35 anos.

“Todos os erros têm efeitos danosos. Com a superestimação ou subestimação dos dados, isso pode gerar custos que serão lesivos à sociedade, com o aumento da tarifação, e até mesmo à concessionária, que pode se ver sucateada e depois querer devolver a concessão com todos os problemas”, alertou o professor Jailton.

“Importante ressaltar que o valor a ser pago pela empresa pela outorga dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário da Deso, assim como os montantes dos empréstimos para investimentos, serão recuperados com os aumentos embutidos nas tarifas e nos serviços. Isso ocorreu em todo lugar”, alerta Sílvio Sá, do Sindisan. Os dados reais de companhias públicas já privatizadas, como Alagoas e Rio de Janeiro, comprovam que as tarifas tiveram aumentos que superaram 100%.

Para o sindicalista, “o Governo Mitidieri engana a população ao afirmar que não haverá aumento impactante nas tarifas da Deso após a privatização, após a concessão para a iniciativa privada. Veja em Alagoas ou no Rio de Janeiro, só para citar dois estados em que houve privatização, e veja os aumentos absurdos nas contas dos usuários e nos serviços”, informa o sindicalista.

 

Mais “erros”: não vai atender todo mundo e não trata da seca

 

A área de abrangência dos estudos para privatização da Deso corresponde aos 75 municípios. Isso está no plano apresentado pelo governador e aprovado pelos prefeitos. Entretanto, a relação de povoados por município nesse plano não corresponde ao total de povoados atendidos hoje pela Deso. Se isso se confirmar, vários povoados vão ficar fora do atendimento da empresa privada.

“Isso é mais grave porque no Plano Microrregional não há previsão de ampliação do atendimento a outras áreas (outros povoados), muito menos de atendimento a populações rurais dispersas”, denunciam os engenheiros.

Segundo os técnicos, espantosamente o diagnóstico dos sistemas de abastecimento de água em operação no estado sequer apresenta as capacidades das unidades existentes, os quantitativos relevantes, os estados de conservação de instalações e equipamentos como bombas e motores.

Além disso, nesse plano de privatização não aborda de maneira adequada o monitoramento da qualidade da água, não trata de ações emergenciais relativas à convivência com estiagens frequentes, muito menos apresenta questões sobre os efeitos das mudanças climáticas em andamento. “Num estado do Nordeste, não pode haver um plano de saneamento que não fala em seca, e estiagem”, disse Jailton.

“Não se justifica qualquer açodamento num processo desse tipo e de se aproveitar da sua complexidade para acelerar a venda dos serviços de água e esgotos do estado de Sergipe”, disse Marcos Montenegro.

O professor Jailton Marques afirmou que Sergipe está indo na contramão do que vem acontecendo no saneamento mundial, tendo em vista que países desenvolvidos e até vizinhos do Brasil voltaram atrás em relação às privatizações nesse setor.

Segundo a Carta Pública dos 13 pesquisadores, o processo de privatização da Deso não atende ao que determina a Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007) porque não tem diagnóstico da situação e de seus impactos nas condições de vida.

O plano de privatização também não traz os objetivos e metas de curto, médio e longo prazos para a universalização. O documento do Governo não apresenta programas, projetos e ações necessárias para atingir objetivos e metas, de modo compatível com os respectivos planos plurianuais e com outros planos governamentais correlatos, identificando possíveis fontes de financiamento.

 

OAB e TCE prometem se envolver no debate

 

Depois de procurados e provocados pelos dirigentes do Sindisan, conselheiros da OAB/SE decidiram aprovaram o ingresso da entidade numa ação judicial ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que aponta inconstitucionalidade em pontos da Lei Complementar nº 398 de 29 de dezembro de 2023 e do Decreto nº 556 de 12 de janeiro de 2024, que criou espaço normativo para a exploração econômica dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no estado de Sergipe.

O relator do processo na OAB/SE, Ismar Francisco, entendeu que diante da relevância do tema para a sociedade sergipana e do vício aparente nas normas examinadas, a entidade deve integrar como parte na Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Além da OAB/SE, os dirigentes do sindicato também procuraram o TCE-SE e entregaram à presidenta do órgão, Suzana Azevedo, a Carta Pública e Nota Técnica que apontam graves erros e omissões no plano de privatização da Deso.

“Apontamos a superestimação ou subestimação de dados, tanto em investimentos como em custos operacionais. Isso pode ser lesivo à sociedade sergipana, com o aumento de tarifas que a concessionária privada vai pedir, inevitavelmente, para alcançar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato devido às incorreções do plano”, destacou o secretário-geral do Sindisan, Aécio Ferreira.

Técnicos do TCE-SE lembraram que há uma resolução do órgão que obriga o Governo do Estado a apresentar o edital, para apreciação do tribunal, 30 dias antes de lançar publicamente.

 

Quem assinou a Carta Pública

A Carta Pública denunciando graves erros e omissões nos documentos que têm sido usados para privatizar a Deso foi assinada por:

  • Profa. Dra. Cristina Célia S. Brandão – Professora Associada da Universidade de Brasília, atua no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos.
  • Profa. Dra. Ana Lucia Britto – Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas.
  • Prof. Dr. Darci B. Campani – Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande dó Sul, integrante do Conselho da Cidades do Ministério das Cidades.
  • Prof. Dr. José Jailton Marques – Professor Titular do Departamento de Engenharia Ambiental e membro do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Ciências Ambientais da Universidade Federal de Sergipe.
  • Prof. Dr. José Irivaldo A. O. Silva – Professor Associado da Universidade Federal de Campina Grande, vinculado ao Departamento de Gestão Pública, pesquisador do CNPq.
  • Prof. Dr. Léo Heller – Pesquisador da Fiocruz, Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais e Doutor Honoris Causa pela University of Newcastle.
  • Profa. Dra. Lourdinha Florêncio – Professora Titular da Universidade Federal de Pernambuco e Coordenadora do Laboratório de Saneamento Ambiental (LSA).
  • Profa. Dra. Luciana N. Ferrara – Professora Adjunta da Universidade Federal do ABC, vinculada à Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território.
  • Prof. Dr. Luiz Roberto S. Moraes – Professor Titular em Saneamento, aposentado e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia.
  • Profa. Dra. Patrícia C. Borja – Professora Associada da Universidade Federal da Bahia e Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPq Saneamento e Saúde Ambiental.
  • Prof. Dr. Rafael K. Bastos – Professor Titular da Universidade Federal de Viçosa, consultor da Organização Mundial da Saúde.
  • Prof. Dr. Ricardo S. Moretti – Professor Titular aposentado da Universidade Federal do ABC e professor visitante da Universidade de Brasília.
  • Profa. Dra. Suyá Quintslr – Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro vinculada ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional.

Sem resposta da Deso

A Mangue Jornalismo entrou em contato com dois assessores de Comunicação da Deso, e apresentou as questões da Nota Técnica e da Carta Pública. Foi pedida uma manifestação oficial da companhia, mas até o fechamento desta reportagem, não houve nenhum retorno. Se no decorrer da semana, a Deso enviar alguma nota, esta reportagem será devidamente atualizada.

Com informações do Sindisan

Fonte: Mangue Jornalismo
Autor: Cristian Góes

 

 

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